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Foram analisadas 150 tilápias do Nilo (Oreochromis niloticus) mantidas em aquários construídos na Unesp (ilustração: Rafael Rubira/Unesp) |
Grupo da Unesp constatou que
mesmo quantidades pequenas de dois agrotóxicos encontrados em áreas de cultivo
de cana podem causar a morte dos animais em 24 horas
Os pesticidas
parationa-metílica (MP) e imazapique (IMZ) estão entre os produtos borrifados
nas plantações de cana-de-açúcar da região de Presidente Prudente, no interior
de São Paulo. Por causa de sua toxicidade, é grande a preocupação com o impacto
dos resíduos no solo e nas águas. “Nos peixes, um dos efeitos desses produtos é
a morte por asfixia”, conta o pesquisador Rafael Rubira, da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual de São Paulo
(FCT-Unesp).
Rubira e seus colegas
analisaram os efeitos dessas substâncias nas brânquias de 150 tilápias-do-nilo
(Oreochromis niloticus) mantidas em aquários construídos no laboratório
da faculdade. As brânquias ou guelras são órgãos respiratórios que absorvem o
oxigênio da água e eliminam dióxido de carbono.
O time de pesquisadores começou
o estudo pelas brânquias por serem o primeiro ponto de contato dos peixes com
essas substâncias, mas outros sistemas e órgãos, como fígado, rins e coração,
estão sendo analisados. A tilápia foi escolhida por ser o peixe mais consumido
no país, de acordo com o pesquisador. O critério de seleção dos pesticidas está
referenciado em pesquisas anteriores que identificaram a presença de resíduos
no solo e nas águas próximas às plantações e assentamentos humanos.
“Ficamos surpresos em constatar
que a exposição a quantidades muito pequenas desses pesticidas, abaixo
inclusive dos limites permitidos pela lei, foi suficiente para danificar as
brânquias de tilápia”, afirma o pesquisador. Graduado em física, ele tem
mestrado e doutorado em ciências e engenharia de materiais, com foco em
metodologias sofisticadas para detectar partículas de pesticidas.
A investigação recebeu apoio da
FAPESP por meio de seis projetos (21/14514-2, 20/05423-0, 20/16310-2, 20/15324-0, 20/15185-0 e 18/22214-6). Os
resultados foram divulgados no Journal
of Hazardous Materials.
O IMZ faz parte do grupo
químico das imidazolinonas, que são herbicidas seletivos usados para combater o
crescimento de certos tipos de plantas daninhas presentes no campo. Seu uso é
autorizado no Brasil para as culturas de amendoim, arroz, cana-de-açúcar,
milho, pastagem, soja, sorgo e trigo. “Porém, é uma substância altamente tóxica,
com elevada solubilidade quando lixiviada em camadas mais profundas do
solo”, diz o pesquisador. A lixiviação é um processo pelo qual minerais,
nutrientes ou poluentes se movem através do solo ou de um meio poroso,
geralmente devido à ação da água, podendo alcançar camadas mais profundas do
solo, aquíferos e recursos hídricos subterrâneos.
O MP pertence ao grupo dos
organofosforados e é um poderoso inibidor da enzima acetilcolinesterase, que
atua na regulação do neurotransmissor acetilcolina, causando efeitos tóxicos no
sistema nervoso de animais e com potencial para danificar a pele e os olhos,
entre outros sistemas corporais expostos de seres vivos.
“Permitido nos Estados Unidos,
com limite de concentração de 9,3 microgramas por litro [µg/L], o MP é proibido
no Brasil, mas ainda é encontrado”, relata Rubira. Vale lembrar que o Brasil é
o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, seguido pela China e pela Índia.
Separados em grupos de dez por
tanque, os peixes foram expostos ao IMZ e ao MP. “Neste trabalho, utilizamos
animais ainda jovens de pisciculturas, livres da adição de insumos para
estimular o crescimento, e os mantivemos em ambiente controlado”, explica
Rubira.
Os pesticidas foram diluídos na
água em quantidades abaixo dos limites permitidos pela legislação de vários
países. Com a ajuda de um equipamento de microscopia confocal, os pesquisadores
avaliaram a ação das substâncias sobre o órgão respiratório em 24 horas e
depois de 96 horas. A técnica proporciona imagens tridimensionais nítidas e
detalhadas dos tecidos e permite também ver mudanças na intimidade das células.
“Antes íntegras, as brânquias
passaram a apresentar alterações prejudiciais à capacidade de absorção de
oxigênio, levando os peixes à morte. Novamente nos surpreendemos ao observar que
os animais já estavam muito debilitados com 24 horas de exposição”, relata
Rubira.
As imagens obtidas revelam que,
mesmo em pouca quantidade e em apenas 24 horas, os pesticidas destruíram
completamente ou danificaram uma parte muito importante das brânquias, que são
os filamentos ou lamelas. Trata-se de estruturas com muitos vasos sanguíneos,
que desempenham um papel fundamental na troca de gases. Para entrar na corrente
sanguínea do peixe, o oxigênio extraído da água precisa passar por essas
lamelas. “Sua destruição é uma sentença de morte para os peixes”, diz Rubira.
Dados
prévios
Antes do experimento com peixes
vivos, o pesquisador e seus colegas simularam o impacto desses dois pesticidas
em modelos de membranas plasmáticas sintetizadas para ter uma ideia do que
poderiam encontrar. “Nós conseguimos criar modelos de membranas utilizando
moléculas de lipídeos semelhantes às encontradas nas brânquias. Os
fosfolipídios desempenham um papel importante na regulação do transporte de
substâncias entre o interior e o exterior da célula”, explica o pesquisador.
No laboratório, essas
estruturas foram bombardeadas com maiores quantidades de IMP e MP. “Quando
vimos o resultado, nossa dúvida passou a ser se baixas concentrações afetariam
da mesma forma os peixes. Vimos que os efeitos colaterais são os mesmos”,
observa o especialista.
A morte de peixes e abelhas não
é uma cena incomum na região. “Vemos com frequência, mas acontece
principalmente no período de plantio da cana, quando são feitas muitas
pulverizações com pesticidas”, diz o pesquisador. Ele conta que se deparou
algumas vezes com a pulverização aérea de pesticidas enquanto coletava amostras
das águas da região em áreas próximas a assentamentos humanos, o que contraria
a lei. Em 2008, o Ministério da Agricultura emitiu uma diretriz proibindo a
pulverização de agrotóxicos a uma distância inferior a 500 metros de áreas
urbanas, cidades e fontes de abastecimento de água.
“Não foi o que eu testemunhei”,
diz Rubira. Segundo o pesquisador, os resíduos de pesticidas pulverizados se
espalham por quilômetros ao redor da plantação. “É frequente ouvir queixas dos
moradores vizinhos das plantações sobre ardência nos olhos, coceira na pele e
na cabeça e manchas cutâneas. Além disso, os resíduos desses pesticidas são
cumulativos na água e no solo”, diz o pesquisador.
Na próxima etapa do estudo, o
time de pesquisadores analisará as interações químicas ocorridas nas moléculas
de gordura (lipídicas) das brânquias. Para isso, usarão um espectrômetro,
dispositivo que mede a intensidade da luz ou radiação em diferentes
comprimentos de onda ou energia para identificar os átomos. Depois, com a ajuda
de análises computacionais, pretendem avaliar quais alterações estão associadas
a processos cancerígenos. “Queremos mostrar, por microespectroscopia, que, se
houver alterações no DNA ou no RNA, as próximas gerações de peixes poderão ter
malformações”, pontua o cientista.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a
Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil
(Orplana) informou que seu porta-voz não estava disponível.
Já o Ministério da Agricultura
e Pecuária (Mapa), questionado sobre a existência de rotinas de monitoramento e
controle do tipo de pesticida usado na cultura da cana-de-açúcar, esclareceu
que “é de competência dos Estados legislar e fiscalizar o uso de agrotóxicos no
âmbito da sua circunscrição.” O Mapa confirmou que a parationa-metílica tem uso
agrícola proibido no Brasil desde 2015. E informou que a Anvisa monitora
resíduos de agrotóxicos no âmbito do Programa de Análise de Resíduos de
Agrotóxicos em Alimentos (Para).
Consultada, a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) relatou que, no período de 2013 a 2022, a
parationa-metílica, proibida desde 2015, foi pesquisada em 18.429 amostras de
alimentos vegetais coletadas no âmbito do Para, tendo sido detectada em seis
amostras (três coletadas em 2014 e três coletadas em 2015). A substância foi
proibida por determinação da Anvisa devido a características mutagênicas.
“Como o imazapique não está
incluído no escopo de substâncias prioritárias do Para, não há resultados da
pesquisa deste ingrediente ativo em amostras coletadas”, informou a
Anvisa.
A Secretaria de Meio Ambiente,
Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo disse à reportagem para
contatar a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Governo de São Paulo,
que, por sua vez, alegou que o assunto é da alçada do Mapa.
O estudo Biological
responses to imazapic and methyl parathion pesticides in bioinspired lipid
membranes and Tilapia fish pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0304389423012268.
Mônica Tarantino
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/pesquisa-mostra-efeito-letal-de-pesticidas-sobre-o-sistema-respiratorio-de-tilapias/50961