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sábado, 5 de abril de 2025

“ADOLESCÊNCIA”, DA NETFLIX, ESCANCARA O QUE FINGIMOS NÃO VER: A DOR SILENCIOSA DE UMA GERAÇÃO À DERIVA

  Produção vai além do crime e expõe uma crise de vínculos, presença e responsabilidade — dentro de casa, nas escolas e nas redes sociais. Como alerta a neuropsicóloga Carla Salcedo: “Estamos perdendo nossos filhos dentro de casa, com a porta do quarto fechada”


Por trás do assassinato brutal que abre a minissérie Adolescência da Netflix, existe algo muito mais alarmante do que um crime: uma sociedade inteira fingindo que não vê. Ao evitar o sensacionalismo policial e optar por uma narrativa crua, sem cortes, a produção expõe com brutalidade o abismo emocional de uma geração conectada digitalmente, mas desconectada afetivamente.

Aos olhos da neuropsicóloga Carla Salcedo, que há mais de 20 anos atua com crianças, adolescentes e famílias, a série é um divisor de águas. “Ela não entrega culpados, entrega espelhos. Não é uma obra sobre quem matou, mas sobre quem deixou de enxergar”, afirma. “O mais doloroso é perceber que o que está ali não é ficção exagerada. É uma representação muito fiel do que muitos adolescentes vivem hoje, uma existência silenciosa, negligenciada e, muitas vezes, invisível para os próprios adultos que deveriam estar presentes”, conta.


A pergunta que ecoa: por que ninguém viu?

Ao longo dos episódios, o espectador é colocado diante de um cenário desconfortável: o adolescente que comete o crime havia dado sinais de sofrimento muito antes. Sofria bullying constante, passava horas trancado no quarto, era emocionalmente frio e se comunicava com emojis. Mas ninguém pareceu notar ou teve coragem de agir.

Esse comportamento, comum a muitos adolescentes na vida real, é frequentemente normalizado. “É só uma fase”, dizem os adultos. Mas quando a apatia se torna regra, o isolamento se intensifica e a relação com o mundo real enfraquece, o risco cresce, silenciosamente.

A ausência de escuta, o tempo escasso de convivência e a terceirização da educação emocional para as telas criam um terreno fértil para a dor não elaborada, para o sentimento de invisibilidade e para condutas impulsivas e violentas.
 

Bullying, misoginia e o perigo das comunidades digitais

Outro ponto abordado com força na produção é o papel das redes sociais. Longe de serem apenas fonte de distração, elas se tornaram, para muitos adolescentes, o único canal de pertencimento. É nesse espaço que discursos de ódio, conteúdos extremistas e grupos como os chamados “incels” (celibatários involuntários) e “manosfera” têm influenciado o comportamento de meninos que não encontram acolhimento fora das telas.

A radicalização não se dá com armas na mão, mas com falas violentas, exclusão, piadas machistas, desumanização e falta de empatia. A série retrata isso em uma cena emblemática: quando um colega do colégio pergunta ao policial se há um vídeo da morte da menina, como se aquilo fosse apenas mais um conteúdo a ser consumido e compartilhado.

Nesse contexto, o bullying também deixa de ser “coisa de escola” e passa a ser um fator de risco sério. A vergonha e o medo de se abrir, somados à ausência de apoio, empurram muitos adolescentes para o silêncio e, às vezes, para a agressão como forma de expressão extrema.

Estamos criando adolescentes sozinhos, emocionalmente analfabetos, bombardeados por ódio e desinformação e chamando isso de fase. Isso não é uma fase. É uma crise. Quando um adolescente passa a se comunicar apenas com emojis, quando a frieza emocional se instala e ele se distancia das próprias emoções, isso não é maturidade precoce, é um pedido de socorro não verbalizado. E a nossa responsabilidade como adultos é interpretar esses sinais e agir antes que seja tarde”, alerta Carla. “


Pais presentes: ainda há tempo?

Apesar da dureza dos temas, Adolescência também abre espaço para reflexão e reconstrução. Pequenos gestos de conexão são apresentados como caminhos possíveis para resgatar vínculos: um pai que decide não ir ao trabalho para almoçar com o filho, outro que tenta se desculpar pela ausência emocional.

Essas atitudes, simples à primeira vista, revelam o que especialistas têm repetido há anos: a presença emocional dos pais é mais importante que qualquer filtro, regra ou performance. O adolescente precisa saber que será ouvido, mesmo quando não souber expressar o que sente.

A porta do quarto fechada não pode ser o limite da nossa preocupação. Muitos pais me dizem ‘mas ele está em casa, está seguro’. E eu sempre digo: o lugar mais perigoso para um adolescente hoje pode ser o próprio quarto, se ele estiver isolado, sem supervisão e mergulhado em conteúdos que estimulam o ódio ou a desconexão emocional. Adolescentes não querem pais perfeitos, querem pais acessíveis. Alguém que esteja ali, mesmo quando não há uma crise aparente. Alguém que olhe nos olhos e pergunte: ‘tá tudo bem de verdade?’”, reforça Carla.
 

A escola também educa ou deseduca

Na série, a escola surge como um ambiente caótico, onde professores gritam, hostilizam e não conseguem lidar com os alunos. A instituição, frágil e sobrecarregada, se esquiva da responsabilidade sob o argumento de que não pode assumir todos os papéis, quando, na verdade, todo adulto que cerca um adolescente tem, sim, responsabilidade afetiva e social sobre ele.

Essa crítica estrutural evidencia uma verdade incômoda: não há como falar de prevenção sem falar de rede. Escola, família, profissionais da saúde, responsáveis legais, todos precisam estar envolvidos. Não há espaço para terceirização emocional.

Mas, há solução! Segundo Carla Salcedo, ela começa com conexão, presença real, escuta ativa e disposição para sair da bolha do “meu filho está bem” e entrar no mundo dele de verdade.

 

6 dicas para pais e educadores!

Como se reconectar com seu/sua filho/a adolescente:

  1. Observe com atenção, não com desconfiança. Mudanças bruscas no humor, no sono, no apetite ou no jeito de se comunicar (como falar só com emojis) são sinais importantes.
  2. Esteja presente de verdade. Reserve momentos diários sem telas para conversar, brincar ou simplesmente estar junto — sem julgamento.
  3. Não normalize o isolamento. Todo adolescente busca alguma privacidade, mas longos períodos sozinho no quarto, principalmente à noite, merecem atenção.
  4. Fale sobre redes sociais. Pergunte que conteúdos eles consomem, quais criadores seguem, como se sentem diante do que veem.
  5. Atenção ao bullying silencioso. Nem sempre ele é visível. O adolescente calado, retraído ou constantemente irritado pode estar vivendo exclusão ou violência emocional.
  6. Seja o adulto acessível. Seu filho precisa saber que pode contar com você. Não quando ele “explodir”, mas desde os pequenos incômodos.

Por fim, um dos aspectos que mais impactam o público é a forma como a minissérie foi filmada. Câmeras coladas aos rostos, ausência de cortes e cenas contínuas provocam desconforto e isso é proposital. A narrativa sem edição escancara o que muitos preferem ignorar: a vida não tem filtro. Não há como voltar atrás depois de determinadas decisões. E é por isso que a ação precisa acontecer agora, enquanto ainda é possível reconstruir vínculos e fortalecer conexões.

 

Carla Salcedo - Neuropsicanalista especialista em traumas e lutos
Avenida Macuco, 726 - Cj. 1110 - Moema
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