Menos estudadas do que as
gramíneas e as árvores, essas espécies vegetais possuem enorme importância para
a biodiversidade, o armazenamento de carbono, a regeneração pós-distúrbios e a
provisão de serviços ecossistêmicos, como alimentos e remédiosAs raízes e sistemas subterrâneos volumosos das plantas
permitem que armazenem carbono de forma eficaz
(foto: Camarea ericoides / Alessandra Fidelis)
Quando se
pensa em Cerrado, as imagens que vêm à mente são de savanas com árvores
retorcidas de pequeno ou médio portes ou de campos abertos com gramíneas
ondulantes e árvores solitárias. No entanto, um grupo de plantas menos
conhecidas, as herbáceas não graminoides, desempenha papel fundamental na
manutenção desse tipo de bioma e na vida de seus habitantes – animais e
humanos.
Esse é o tema de um artigo
publicado recentemente na Annual Review of Ecology, Evolution, and
Systematics: “Past, Present, and Future of Forbs
in Old-Growth Tropical and Subtropical Grasslands”.Conduzido por
uma colaboração internacional de pesquisadores, o estudo de revisão investigou
o papel ecológico dessas plantas em savanas e campos. E mostra que as
herbáceas não graminoides são essenciais para a biodiversidade, o armazenamento
de carbono, a regeneração pós-distúrbios e a provisão de serviços
ecossistêmicos, como alimentos e remédios.
Conforme explica a
pesquisadora Alessandra Fidelis,
do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), uma
das autoras do estudo, apoiada pela FAPESP,
essas plantas são frequentemente esquecidas em estudos que priorizam gramíneas
e árvores. “Muitas dessas plantas possuem estruturas subterrâneas
especializadas, como rizomas e xilopódios, que as tornam incrivelmente
resilientes a secas, herbivoria e incêndios frequentes, características
marcantes de ambientes como o Cerrado”, diz.
O Cerrado, por exemplo, abriga
espécies como as sempre-vivas, as orquídeas terrestres e o capim-dourado,
algumas das quais florescem logo após o fogo, criando paisagens viçosas em
períodos pós-queimadas. Essas plantas compõem até 70% do estrato herbáceo em
algumas áreas, sendo fundamentais para a regeneração do ecossistema. Além
disso, suas raízes e sistemas subterrâneos volumosos permitem que armazenem
carbono de forma eficaz, um aspecto crítico no contexto da atual emergência
climática.
“Estima-se que a biomassa
subterrânea de herbáceas nãomgraminoides no Cerrado supere a biomassa acima do
solo em até 1,5 vez. Essa capacidade de retenção de carbono é amplificada pela
longevidade de suas estruturas, que podem durar muitos anos, conferindo estabilidade
ao ecossistema”, informa Fidelis.
Além de sustentar a
biodiversidade, essas herbáceas são fonte de alimento e medicina. Comunidades
tradicionais utilizam suas raízes e folhas como parte da dieta ou em
preparações medicinais. A mandioca, embora domesticada, é um exemplo de planta
com raízes nutritivas que remonta a essa tradição. Outros exemplos incluem a
macela, conhecida por suas propriedades anti-inflamatórias, e o capim-dourado,
usado em artesanato sustentável.
A medicina tradicional reconhece
ainda as propriedades do Eryngium pristis (língua-de-tucano),
utilizado como diurético e no tratamento de úlceras da boca e da garganta;
da Vernonia ferrugínea (assa-peixe), depurativa e diurética;
da Anemopaegma arvense (catuaba), tonificante do sistema
nervoso e estimulante sexual; da Camarea affinis (pé-de-perdiz),
para inflamações uterinas e parto; da Gomphrena officinalis (paratudo),
para febre, gripe e asma; e do Sisyrinchium vaginatum (capim-rei),
para febre e resfriado. Entre as frutíferas, vale destacar a Annona
warmingiana (araticum-rasteiro), a Pradosia brevipes (fruta-do-tatu),
o Ananas ananassoides (ananás) e a Bromelia balansae (gravatá).
“Na África, análises de DNA em
fezes de grandes herbívoros revelaram que eles consomem muitas dessas plantas,
até mesmo para automedicação. Os estudos sugerem que animais como elefantes e
antílopes ingerem essas espécies para aliviar doenças ou parasitas,
comportamento também observado em primatas”, destaca Fidelis.
Como tudo no Cerrado, as
herbáceas não graminoides enfrentam sérias ameaças, decorrentes do
desmatamento, da conversão de terras para agricultura e da invasão por espécies
exóticas. Atividades como a aração profunda podem destruir suas estruturas
subterrâneas, inviabilizando a regeneração natural. “Essas plantas são muito
resilientes ao fogo e à herbivoria, mas extremamente sensíveis a distúrbios que
revolvam o solo”, afirma Fidelis.
Cabe lembrar que 46% da
vegetação original do Cerrado já foi perdida para a agricultura, afetando
profundamente a biodiversidade local. Além disso, práticas de manejo
inadequadas, como queimadas descontroladas e a introdução de espécies
invasoras, como gramíneas africanas, agravam fortemente o cenário.
Nesse contexto, práticas de
manejo adaptativo, como queimas controladas, podem ajudar a preservar essas
espécies. “No Cerrado, por exemplo, a aplicação de queimadas prescritas promove
a floração rápida de espécies como algumas sempre-vivas e
canelas-de-ema [Vellozia], favorecendo a regeneração do ecossistema”,
pontua a pesquisadora.
O estudo também destaca a
necessidade de integrar essas plantas em projetos de restauração. Atualmente,
muitas iniciativas focam apenas em gramíneas e árvores, negligenciando as
herbáceas não graminoides. “A restauração ativa, com plantio de espécies
nativas, semeadura direta e translocação de solo rico em sementes e estruturas
subterrâneas, pode ser uma estratégia eficaz, embora custosa. Por isso, evitar
a conversão de áreas naturais ainda é a melhor forma de preservar esses
ecossistemas”, pondera Fidelis.
Há ainda um elemento adicional,
que vem ganhando atenção em projetos de paisagismo sustentável: a utilização
dessas plantas no âmbito urbano. Espécies nativas, como as orquídeas
terrestres, estão sendo incorporadas em áreas verdes, contribuindo para a manutenção
de polinizadores e a promoção de uma estética mais condizente com o contexto
natural.
Embora ainda pouco estudadas,
as herbáceas não gramínoides representam uma peça-chave nos mosaicos de
savanas tropicais. Elas não apenas sustentam comunidades biológicas complexas,
mas também oferecem serviços essenciais à humanidade. “Esperamos que este
estudo chame atenção para a importância desse grupo e incentive novas
pesquisas. A integração entre conhecimento científico e saberes tradicionais é
fundamental para garantir a conservação dessas plantas e dos ecossistemas que
elas sustentam”, conclui Fidelis.
O estudo Past, Present,
and Future of Forbs in Old-Growth Tropical and Subtropical Grasslands pode
ser acessado em https://www.annualreviews.org/content/journals/10.1146/annurev-ecolsys-102722-022331.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/plantas-herbaceas-nao-graminoides-sao-fundamentais-para-a-preservacao-do-cerrado/53710
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