Com a proximidade da entrada em vigor da Reforma Tributário, alguns Estados passaram a impor restrições ao crédito escritural de ICMS, contrariando a CF e a Lei Kandir
A
não-cumulatividade do ICMS, prevista no artigo 155, §2º, inciso I da
Constituição Federal, assegura ao contribuinte o abatimento do imposto pago nas
etapas anteriores da cadeia comercial. O imposto é apurado mensalmente pela
diferença entre créditos (ICMS das entradas) e débitos (ICMS das saídas). Quando
o contribuinte acumula mais créditos que débitos em um período, gera-se um
saldo credor, que pode ser utilizado em períodos futuros para compensar débitos
do imposto.
“Para
preservar a neutralidade fiscal e permitir o uso desse saldo em momentos de necessidade,
o artigo 24, III da Lei Kandir autoriza que o saldo credor seja transportado
para períodos subsequentes. Essa prática é fundamental para garantir que o
contribuinte não seja prejudicado por sazonalidades de mercado ou por
oscilações no volume de operações tributáveis, equilibrando a carga tributária
ao longo do tempo”, afirma Amanda Gazzaniga, tributarista do ButtiniMoraes
Advogados.
Além
disso, empresas que frequentemente acumulam saldos credores, como as
exportadoras, podem solicitar a conversão desse saldo em crédito acumulado,
conforme prevê o artigo 25 da Lei Kandir. “O crédito acumulado, uma espécie de
"moeda fiscal", após homologação pelo Fisco, pode ser utilizado para
fins mais amplos, como transferência a terceiros, pagamento de fornecedores ou
quitação de débitos fiscais, sendo um instrumento essencial para setores
estratégicos”, acrescenta Michelle Cristina Bispo Romano, advogadas do
ButtiniMoraes.
Amanda
acrescenta que, apesar da não-cumulatividade ser uma garantia constitucional,
alguns estados têm adotado medidas para restringir o direito ao aproveitamento
de saldos credores, impondo prazos de prescrição que carecem de base legal, o
que pode representar um movimento para uma espécie de calote em razão da
proximidade da Reforma Tributária.
Artigo
23 da Lei Kandir e o Prazo de Prescrição
O
Artigo 23 da Lei Kandir está sendo frequentemente interpretado de forma
equivocada como limitador do prazo para o aproveitamento de saldos credores ou
créditos acumulados do ICMS. “Mas uma análise cuidadosa revela que a norma não
impõe essa limitação. Seu escopo determina que o direito ao crédito decorre da
não-cumulatividade, condicionado à verificação de documentação idônea e à
escrituração da operação no prazo legal. Já o parágrafo único prevê que o direito
de utilizar o crédito extingue-se depois de decorridos cinco anos contados da
data de emissão do documento. Essa utilização refere-se à escrituração e
não à compensação ou liquidação dos créditos”, explica Michelle.
Conforme
as regras de interpretação legislativa, o parágrafo único deve ser lido como
complemento do caput. Ou seja, o prazo de cinco anos limita-se ao
reconhecimento formal do direito ao crédito, por meio da escrituração das
operações que o originaram, como a entrada de insumos com notas fiscais
idôneas. “Isso está em conformidade com os artigos 10 e 11, III, “c”, da Lei
Complementar nº 98/1995, que orientam a interpretação de normas. Dessa forma, o
prazo não se aplica à liquidação ou ao aproveitamento posterior dos créditos”,
comenta Amanda.
Além
disso, a Lei Kandir diferencia os conceitos de "utilizar" e
"liquidar". Enquanto o termo "utilizar", no artigo 23,
refere-se à escrituração do crédito, o termo "liquidar", como aparece
no artigo 24, trata da compensação efetiva dos créditos com débitos de ICMS.
Assim, o legislador não impôs qualquer limitação temporal para a liquidação de
créditos já reconhecidos e escriturados, mas apenas para a formalização inicial
desses créditos.
“Diversos
estados, como São Paulo e Paraná, adotam essa mesma posição, permitindo o
aproveitamento indefinido dos créditos desde que devidamente escriturados no
prazo de cinco anos. Isso protege o direito creditório do contribuinte,
garantindo a neutralidade fiscal e evitando imposições desproporcionais, que
inviabilizariam o exercício desse direito em situações fora de seu alcance”,
exemplifica Amanda.
Movimentos
Estaduais Contrários aos Contribuintes: Ceará e Bahia
Nos
últimos tempos, alguns estados, como Ceará e Bahia, têm adotado medidas que
restringem a não-cumulatividade do ICMS, impondo prazos de prescrição
arbitrários para o aproveitamento de saldos credores e créditos acumulados. No
Ceará, a Lei nº 18.665/2023 introduziu, de forma sutil, uma limitação temporal
ao estabelecer, em seu artigo 78, que o “direito de utilizar o crédito
extingue-se depois de decorridos 5 anos contados da data de emissão do
documento”. “Essa redação, que deveria tratar apenas da escrituração do
crédito, acaba sendo aplicada como prazo para a compensação dos créditos,
desvirtuando o contexto original do artigo 23 da Lei Kandir” detalha Michelle.
Esse
desvirtuamento foi agravado pela edição da Norma de Execução 02/2024,
que determinou que créditos fiscais de ICMS não utilizados dentro de cinco anos
deveriam ser estornados da escrita fiscal, sob pena de multa de 100% do valor
do crédito não estornado. “Essa interpretação contraria frontalmente o
princípio da não-cumulatividade, pois transforma uma limitação
administrativa em regra prescritiva sem respaldo na Lei Kandir, que é a norma
complementar federal competente para tratar do tema”, diz Amanda.
De
acordo com Michelle, na Bahia, por outro lado, a restrição não ocorreu por meio
de alteração legislativa, mas pela utilização de pareceres da Procuradoria
Geral do Estado (PGE). Esses pareceres interpretam que o termo
“utilização”, constante no artigo 31 da Lei Estadual nº 7.014/96
(similar ao artigo 23 da Lei Kandir), refere-se à compensação do crédito com
débitos fiscais e não à sua escrituração. Com base nessa interpretação, o Fisco
Estadual tem alegado que créditos vinculados a operações com mais de cinco anos
de emissão seriam indevidamente aproveitados pelos contribuintes.
No
entanto, a Lei Kandir não estabelece qualquer limitação temporal para o
aproveitamento de créditos regularmente escriturados ou homologados. O prazo de
cinco anos refere-se apenas à formalização inicial do crédito, ou seja, à
escrituração de documentos fiscais idôneos. Assim, as interpretações
restritivas defendidas pelos estados e baseadas em normas infraconstitucionais
são ilegais e violam a competência exclusiva da Lei Complementar para regular a
matéria.
“Essas
medidas estaduais representam afrontas ao princípio da não-cumulatividade,
que é garantido constitucionalmente para evitar a tributação em cascata. A
imposição de limites artificiais para a compensação de créditos prejudica a
segurança jurídica dos contribuintes e deve ser rechaçada, dado que contraria
tanto a Lei Kandir quanto o equilíbrio do sistema tributário nacional”,
destaca Amanda.
Com
a Reforma Tributária, que prevê a extinção do ICMS em 2033, o legislador
constitucional garantiu que os saldos credores acumulados poderão ser
utilizados pelos contribuintes até o final do período de transição. Caso não
sejam totalmente aproveitados, os estados deverão ressarcir esses créditos em
moeda, conforme o artigo 134, §6º, inciso III da Constituição. “Porém, esses
recentes movimentos de alguns estados, como a imposição de prazos de cinco anos
para a liquidação de créditos, reduzem artificialmente o valor que os estados precisariam
ressarcir no futuro, ao limitar o direito creditório do contribuinte a esse
período”, ressalta Amanda.
Além
disso, essa restrição temporal favorece o aumento da arrecadação atual dos
estados. Com a prescrição dos créditos acumulados, contribuintes que poderiam
compensar débitos de ICMS com seus saldos serão obrigados a quitar os débitos
com pagamento em espécie, gerando receita adicional para os cofres estaduais.
“Essa prática, embora beneficie os estados em um cenário de incerteza fiscal
devido à transição tributária, contraria o princípio constitucional da
não-cumulatividade e compromete os direitos adquiridos pelos contribuintes”,
argumenta Michelle.
Dessa
forma, surge a reflexão: as medidas adotadas pelos estados seriam uma
estratégia para evitar o desembolso futuro e aumentar a arrecadação presente,
ou simplesmente um equívoco na interpretação da Lei Kandir? “Independentemente
da resposta, é evidente que essas ações desrespeitam os limites constitucionais
e legais, impondo um ônus indevido aos contribuintes e enfraquecendo as bases
da não-cumulatividade”, conclui Amanda.
ButtiniMoraes
Advogados
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