Uma das histórias sobre o Buda conta que, um famoso
matador profissional de sua época começou a seguí-lo. O Buda não desviou o seu
olhar e continuou seu caminho. O bandido, que se chamava Agulimalia, começou a
gritar para o Buda parar, mas ele não detinha seu passo. O cara foi ficando
irritado e apertou o passo, até finalmente alcançar o Iluminado. Furioso,
perguntou por que não tinha parado. O Buda respondeu: “Eu já parei há muito
tempo, Agulimalia: parei de fazer coisas que causam o sofrimento das pessoas e
outros seres. Parei de causar a morte e trato de cuidar muito bem de tudo e de
todos que me cercam. Todos querem viver. Todos temem a morte”. Reza a lenda que
o malfeitor ficou tão impressionado que prometeu nunca mais matar nenhum ser
vivo e se tornou um monge.
A animação da Pixar, “Divertidamente 2”, acompanha
a menina do primeiro filme, Riley, se tornando uma adolescente. Na sala de
controle de sua cabeça, as Emoções fundamentais que estavam no primeiro filme,
Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojo recebem novos convidados, não muito
desejáveis: Ansiedade, Inveja, Tédio e Vergonha. Mas ficou faltando um
personagem oculto, o mais importante, o afeto primordial que faz tudo se
movimentar na cabeça de Riley, e na nossa cabeça: a Insegurança.
Estudos de Neurociência apontam que, desde a vida
fetal, existe uma espécie de ressonância entre o Feto e as emoções da mãe. Como
um primeiro reconhecimento. A ideia freudiana que ficar dentro do líquido
amniótico, boiando nove meses sem nenhuma tarefa, nenhuma responsabilidade, só
a sensação oceânica de prazer e proteção, na verdade não é bem assim. Os medos,
a insegurança, as dúvidas, são transmitidas para o bebê em formação. Uma vez eu
fiz um relaxamento para pessoas que estavam num workshop e fomos voltando no
tempo, numa regressão até o tal período fetal, onde tudo era paz? Para muita
gente, não. Uma moça descreveu uma sensação de um lugar gelado, o que pode ter
sido uma depressão que sua mãe estava passando na gestação.
O fato é que, como disse o Buda, queremos viver,
queremos cuidar e receber cuidado, e a vida já começa, desde o início, com a
percepção da insegurança. A Insegurança é evolutiva e preserva, ou tenta
preservar, a nossa sobrevivência. Existe um parasita, o Toxoplasma, que infecta
ratos, mas tem como hospedeiro principal os gatos. Por um mecanismo
desconhecido, ele desliga o medo no Cérebro dos ratos, que vão brincar com os
gatos e acham os caras interessantes. Não é difícil prever o que acontece com
esses ratos. Portanto, precisamos da Insegurança para viver. No caso do nosso
Cérebro, que é uma máquina preditiva, fazemos cálculos baseados em nossa
Insegurança o tempo todo. Não acabamos na pança de nenhum predador, geralmente,
mas passamos a vida com Medo do que possa acontecer.
No filme, a menina Riley descobre que suas “best
friends” não vão continuar na sua escola. Ela vai para um acampamento de Hockey
e passa a fazer de tudo para se entrosar com as garotas mais velhas. Para isso,
ela dá as costas para suas amigas, mente, maltrata e trapaceia porque na Sala
de Comando está a Ansiedade. Mas quem está comandando a ansiedade é a
Insegurança. O medo de ficar de fora, o famoso Fear of Missing Out, o medo da
exclusão que está transformando a Adolescência numa jornada perigosa e cheia de
medicamentos antidepressivos.
Quem está lendo aí do outro lado da tela deve
concordar comigo que nosso mundo se transformou numa Adolescência coletiva, e
todo mundo vive acossado pela sensação meio constante de Insegurança e Medo.
Medo do futuro, da doença, da velhice, de ficar de fora, não do time de Hockey,
mas fora do mercado, fora da Rede Social, cancelado de alguma forma do Mundo.
Não temos medo do predador, temos medo de deixar de existir num cancelamento
social, afetivo, econômico. Por isso, nossa velha dama Insegurança hoje está
bem acompanhada por outro afeto novo, o Burnout, o Esgotamento. Já começamos o
dia esgotados.
Procuramos o avesso da Insegurança na falsa
sensação da Segurança e sua pior doença, que é o Controle. Vamos atingir a
Segurança quando tudo for controlado, e a vida ficar protegida dentro de um
cofre. Ou seja, a tentativa de controle se opõe à própria vida. Riley vai
descobrir isso no seu acampamento. E nós, nem sempre vamos aprender. Nem vamos
desistir de tentar controlar o que não tem controle.
Se não controlamos nada, e a vida é um surfar em
uma constante Incerteza, qual é o avesso da Incerteza?
Esse texto já tinha essa resposta: parar de causar
sofrimento às pessoas e os seres que nos cercam, e cuidar da Insegurança de
todos é um bom jeito de começar. O avesso da Insegurança é o Cuidado.
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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