insights sobre os processos de formação estelar e de evolução galáctica
Com idade estimada em 13
bilhões de anos, e massa total equivalente a cerca de 60 bilhões de massas
solares, nossa galáxia, a Via Láctea, possui em seu bojo um buraco negro
supermassivo, da ordem de 4 milhões de massas solares. Como o observador
terrestre e o centro da Via Láctea se encontram no mesmo plano – o plano
galáctico –, o acesso óptico ao bojo é impossibilitado por enormes nuvens de
gás e poeira que se interpõem no caminho e bloqueiam a luz visível. Mas
observações em determinados comprimentos de ondas (como raios X, rádio ou
infravermelho) capazes de atravessar a barreira de matéria têm sido realizadas.
Uma via complementar é estudar galáxias semelhantes à Via Láctea para entender
o papel das estruturas centrais na alimentação dos buracos negros supermassivos
e na formação estelar.
Esse foi o foco de estudo
realizado pela astrônoma Patrícia da Silva no Observatoire de Paris, na França, apoiado por Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior da FAPESP . Os resultados
foram divulgados no periódico Astronomy & Astrophysics.
Da Silva é pós-doutoranda no
Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de
São Paulo (IAG-USP). O artigo em pauta foi assinado por ela e por sua
supervisora no exterior, Françoise Combes, do
Observatoire de Paris e do Collège de France.
“Investigamos como as ‘barras’
e as ‘espirais’ existentes nas galáxias influenciam o movimento do gás rumo ao
centro, onde ele pode abastecer buracos negros supermassivos e desencadear
surtos de formação estelar”, conta Da Silva. Ela explica que “barras” e
“espirais” são enormes estruturas compostas por estrelas e gás. O processo de
formação das barras é significativamente complexo e resulta de instabilidades
gravitacionais no disco da galáxia, fazendo com que estrelas e gás se
distribuam em uma estrutura alongada. As barras são encontradas em cerca de
dois terços de todas as galáxias espirais do universo local, entre elas a Via
Láctea.
“Este projeto no exterior foi
gerado a partir de um trabalho maior, objeto do meu pós-doutorado, que busca estudar os núcleos
de galáxias semelhantes à Via Láctea, com ou sem barra. Esse projeto-pai, por
sua vez, recorreu a dados de um grande survey, o DIVING 3D, Deep IFS View of Nuclei of
Galaxies, cujo objetivo é estudar as regiões centrais de todas as galáxias do
hemisfério Sul, numa certa faixa de brilho e de coordenadas. A amostra do survey é
de 170 galáxias. Destas, 15 são gêmeas morfológicas da Via Láctea (Milky Way
Morphological Twins – MWMTs), galáxias intermediárias barradas que possuem
os tipos morfológicos SABbc e SBbc; e oito são Sbcs, galáxias análogas à nossa,
porém, sem barra. São essas 23 que constituem os meus objetos de interesse.
Para estudar a dinâmica do gás nesse contexto, além do DIVING 3D, recorri a
dados do Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (Alma), do Hubble Space
Telescope e do Legacy Survey. Em função dos dados disponíveis, precisei fechar
o foco em dez galáxias: oito MWMTs e duas Sbcs”, conta Da Silva.
Segundo a pesquisadora, um dos
vários objetivos do projeto-pai é comparar as amostras de MWMTs e de Sbcs para
descobrir se há alguma influência da barra na emissão da região nuclear e circum-nuclear.
“Ao estudar a emissão nuclear e circum-nuclear das MWMTs, notamos
que há uma grande variedade de estruturas, como anéis circum-nucleares
e espirais nucleares, que conectam a galáxia com o núcleo. A partir disso,
surgiu a ideia de analisar a influência da barra no contexto do transporte de
gás para a região nuclear. Em que nível a barra é responsável pela formação das
estruturas que observamos? A barra seria também responsável pelo abastecimento
direto de gás para o núcleo, tornando ativo o buraco negro supermassivo que ali
reside, isto é, gerando um AGN [do inglês Active Galactic Nucleus ou
Núcleo Ativo de Galáxia]? Foi assim que nasceu o projeto-filho, que conduzi em
minha pesquisa no exterior”, informa.
Um dos principais objetivos foi
quantificar a eficiência das barras no transporte de gás em diferentes escalas,
de centenas a milhares de parsecs. Vale lembrar que cada parsec (cujo símbolo é
pc) vale cerca de 3,26 anos-luz, ou seja, quase 31 trilhões de quilômetros.
“As barras são estruturas
alongadas de estrelas que criam regiões de ressonância gravitacional, onde o
gás, em rotação, é transportado rumo ao núcleo ou rumo às bordas da galáxia,
dependendo do torque gravitacional exercido sobre ele. Em galáxias barradas dos
tipos SABbc e SBbc, esses torques são predominantemente negativos, o que
resulta na perda de momento angular do gás e, portanto, em seu movimento em
direção ao centro galáctico. Esses fluxos de gás podem alimentar o buraco negro
supermassivo e desencadear atividades de formação estelar”, descreve Da Silva.
Nas galáxias barradas da
amostra, observou-se que os torques negativos dominam na região situada entre a
barra e os anéis circum-nucleares (em torno de 300 parsecs),
facilitando o transporte de gás para essas regiões e contribuindo para a
formação de novas estrelas. No entanto, sabe-se que, dentro dos anéis circum-nucleares,
os torques tendem a se inverter para positivos, interrompendo o fluxo de gás
para o núcleo. A presença de buracos negros supermassivos ativos (AGNs) pode
gerar novas ressonâncias, produzindo mais estruturas até o buraco negro
supermassivo, conectando este com as demais estruturas de larga escala da
galáxia e permitindo o contínuo abastecimento de gás para o núcleo galáctico.
“Enquanto as galáxias barradas
demonstram um padrão claro de transporte de gás para o centro, as galáxias sem
barra [Sbcs] apresentam dinâmicas diferentes. Nesses casos, o gás é
transportado rumo às bordas da galáxia devido a torques positivos
predominantes. Isso sugere que, em galáxias sem barra, outros mecanismos, como
a interação gravitacional dos braços espirais, devem desempenhar um papel no
transporte de gás para o núcleo, se houver”, relata Da Silva.
Um dos aspectos mais relevantes
do estudo foi o impacto que os torques gravitacionais têm na formação de
estruturas circum-nucleares, como anéis e espirais nucleares. Essas
estruturas são fundamentais para compreender como o gás é redistribuído em
escalas menores dentro da galáxia. Anéis circum-nucleares são
locais de intensa formação estelar, alimentados pela compressão do gás à medida
que ele se acumula em regiões de ressonância gravitacional. Já as espirais
nucleares (em alguns casos conectadas a estes anéis circum-nucleares)
podem desempenhar um papel essencial no transporte contínuo de gás para o
núcleo, alimentando o buraco negro supermassivo e mantendo núcleos ativos de
galáxia (AGNs).
Da Silva acrescenta: “Em galáxias
não barradas, os torques gravitacionais são menos eficientes no transporte de
gás em direção ao centro. Essas galáxias estão sendo analisadas neste momento
no Survey DIVING 3D. Estamos investigando as principais características de suas
regiões nucleares para compararmos com as MWMTs e relacionarmos a ausência da
barra nesses cenários”.
Um ingrediente fundamental na
evolução das galáxias é a condução do gás para os centros galácticos e a
alimentação dos buracos negros supermassivos. Esses corpos extremamente densos,
presentes em quase todas as galáxias, regulam a quantidade de gás disponível
nas regiões centrais e influenciam a formação estelar ao redor. Os dados
analisados no estudo mostram que as barras facilitam o transporte para a região
central. “No entanto, à medida que o gás se aproxima do núcleo, novos
mecanismos devem entrar em ação para que ele continue a cair rumo ao buraco
negro supermassivo. Observações de alta resolução revelaram que, em escalas de
aproximadamente 10 parsecs, barras nucleares menores podem desempenhar esse
papel, canalizando gás diretamente para o centro”, informa Da Silva.
Embora o estudo tenha feito
avanços significativos no entendimento dos torques gravitacionais e sua influência
no transporte de gás, há ainda muitas questões em aberto. Uma das limitações
enfrentadas pelas pesquisadoras foi a resolução espacial disponível nos dados,
que impediu uma análise mais detalhada em escalas menores, como a de 10
parsecs. Da Silva ressalta que futuros estudos com imagens de maior resolução
são necessários para entender completamente como o gás é canalizado para o
buraco negro supermassivo e como esse processo afeta a evolução de longo prazo
das galáxias. Além disso, o estudo sugere que a força das barras não é uma
característica permanente, variando ao longo de bilhões de anos. Fatores como a
presença de gás no disco galáctico e as interações gravitacionais podem
influenciar a longevidade das barras, tornando o transporte de gás um processo
dinâmico e complexo.
“Ao entender melhor como o gás
é redistribuído em galáxias gêmeas da Via Láctea, podemos obter novos insights sobre
a evolução de nossa própria galáxia e o papel que o buraco negro supermassivo
central desempenha nesse processo. Nossa pesquisa oferece uma base sólida para
futuras investigações”, conclui Da Silva.
O artigo Multiple-scale
gas infall through gravity torques on Milky Way twins pode ser
acessado em: www.aanda.org/component/article?access=doi&doi=10.1051/0004-6361/202450500.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estruturas-em-forma-de-barra-alimentam-buraco-negro-supermassivo-no-centro-de-galaxias-analogas-a-via-lactea/52860
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