Após um século sem ser vista pelo público, a quinta escultura do Chafariz do Imperador, monumento conhecido como Guaíba e Seus Afluentes, também está em Iberê Camargo – Território das Águas. Com curadoria de Blanca Brites e Gustavo Possamai, mostra abre no dia 14 de setembro
Haveremos de
aterrar o Rio Guaíba, haveremos de atravessá-lo a pé, não com a separação das águas que permitiu ao povo de Israel transpor a pé enxuto o
Mar Vermelho, mas com um sólido aterro, que povoaremos de altaneiros
espigões, de cassinos, de parques, de piscinas, de campos de esporte para
agradar e iludir o povão. Continuaremos obstinados a atravancar as ruas já
estreitas com crescente número de automóveis poluidores. Contra o monóxido
de carbono, usaremos máscaras coloridas, o que assenta com nossa vocação carnavalesca. A eletricidade nós captaremos diretamente das nuvens,
e o conteúdo das fossas transformaremos em vapor biodegradado. Não ouviremos
o barulho da megalópole, porquanto já estaremos todos surdos. Então, Porto
Alegre não será mais uma cidade anã: anões seremos nós.”
Inspirada no texto Urge tombar
o Guaíba, escrito em 1993 por Iberê Camargo, a Fundação
Iberê abre no dia 14 de setembro (sábado), uma grande
exposição com pinturas, desenhos e textos em que o artista abordou o tema. Iberê
Camargo – Território das Águas apresenta 42
obras que mostram, claramente, que a valorização do meio ambiente estava, além
da arte em seus escritos. Pela primeira vez, também serão expostas sete
paisagens de Maria Coussirat Camargo. Parte delas foi vista uma
única vez, em mostra de alunos do curso de Artes Plásticas do então Instituto
de Belas Artes, no final da década de 1930.
“Como nenhuma delas é datada,
acreditamos que sejam do período da universidade. Maria dizia ser mulher de
palavra, e quando disse a Iberê que não mais pintaria, de fato não pintou. Disse
que em toda a parte é preciso sempre renunciar a alguma coisa”, lembra Gustavo
Possamai, responsável pelo acervo da Fundação Iberê e um dos curadores da
exposição.
“Já mataram o
nosso Guaíba”
Embora não se definisse como um ativista, Iberê
Camargo era crítico costumaz ao descuido com o meio ambiente, a exploração e
apropriação de recursos naturais, além da relação entre o progresso tecnológico
e as consequências ambientais de tais avanços quando geridos de forma
irresponsável: “Me sinto na obrigação de dizer um basta a este extermínio da natureza.
Não por mim, mas pelas novas gerações que virão”.
Em outra declaração, o pintor
observa: "Existem muitos artistas que fazem arte conceituosa; eu não faço.
Minha arte não é expressionista, abstrata. Não é por isso que deixarei de
pensar nos problemas tão concretos que nos cercam. Falo como homem, o principal
interessado. Eu sei, por exemplo, que vocês aqui tiveram que lutar pelo rio.
Vocês mataram o Guaíba, não é? [...] Isto é um crime, e muito grave. É curioso
que as pessoas não se apercebam dos perigos”.
As águas acompanharam Iberê
desde Restinga Seca, sua cidade natal. Uma restinga onde, em algum momento,
águas e areias se juntaram, mas o tempo acabou por deixar o solo seco. Depois,
as mudanças constantes de cidade, em razão da profissão do pai como
ferroviário, o levaram para lugares por onde passavam outros rios.
Foram as lembranças dessas
paisagens que motivaram os primeiros trabalhos de Iberê. Paisagens onde via uma
simplicidade e uma solidão que ressoavam com os seus sentimentos. E foi essa
conexão que embasou, mais tarde, a sua revolta com a exploração desenfreada dos
recursos naturais.
Quando chegou a Porto Alegre
em 1936 – onde permaneceu até 1942, quando partiu para o Rio de Janeiro – Iberê
Camargo conheceu e pintou o Guaíba. Suas tintas, então, partiram para essa e
outras paisagens: os pontos altos da Capital gaúcha com casarios, onde o Guaíba
se fazia presente ao fundo, a beira do Arroio Dilúvio e a Rua da Margem, hoje o
bairro Cidade Baixa, lugar em que morou com Maria Coussirat Camargo quando se
casaram. Esses trabalhos são memória de um tempo anterior à canalização do
Dilúvio, que desembocava no Guaíba, e de quando a histórica Ponte de Pedra
ainda tinha sua função.
Próximo das suas obras finais,
aumentaram as preocupações do artista com as mudanças climáticas e a poluição
das águas, como mostra, por exemplo, a pintura Rio dos Sinos (1989), que hoje
integra uma coleção mineira e que registra, com uma forte carga de tensão, um pescador
desolado, e peixes mortos à borda das águas de um dos rios mais poluídos do
Estado.
“Iberê percebeu que a natureza
tem sua própria vontade e tempo. Há pouco, vivemos a experiência da dor
coletiva pela tragédia anunciada que ocorreu em maio de 2024, maior do que a de
abril de 1941, enchente que fica marcada pela perda de vidas, de memória, de
material de todas as ordens, só amenizada pela solidariedade voluntária de
todos. A cidade de Porto Alegre nem sempre valorizou o encontro natural com as
águas do Guaíba, tampouco criou situações para que fossem admiradas por seus
moradores. E, quando se dispuseram a fazê-lo, foi para ir além de suas margens,
o que ocorre desde a primeira canalização do Arroio Dilúvio, que nele
desaguava, e por mãos que exigem mais apropriação de áreas e mais espaço
construído. O artista registrou um incendiário pôr do sol no Guaíba, de 1991,
da mesma visão que se tem da Fundação Iberê. Há um especial significado Iberê
Camargo estar às margens do Guaíba, onde o sol adormece. É um presente ao
artista que sempre declarou seu amor e respeito a essas águas”, escreve Blanca
Brites.
As paisagens de
Maria
Exímia aluna do Colégio Sévigné, filha de Ladislau
Coussirat Júnior, conhecido como “Lalau”, e de Felicidade Cruz Coussirat, a “Dona
Nena”, Maria Cruz Coussirat (1915-2014) nasceu com a arte pulsando na família –
a mãe gostava de pintar e todas as mulheres Coussirat tocavam piano ou cantavam
–, diferentemente de Iberê Camargo, cuja mocidade no interior do Estado foi
culturalmente limitada.
Maria e Iberê se conheceram em
1937, no Instituto de Belas Artes da Universidade de Porto Alegre, atual
Instituto de Artes da UFRGS. Ela estudou Pintura e formou-se em dezembro de
1940; ele frequentou o Curso Técnico de Arquitetura, mas largou antes de se formar.
Pouco tempo depois de receber seu diploma, Maria decidiu que sua vida seria
cuidar do marido, na vida e na arte.
Além de guardar todo o tipo de
material documental relacionado ao pintor, e que hoje faz parte do acervo da
Fundação Iberê, a opinião de Dona Maria era marcante no processo criativo do
artista. Ela palpitava sobre as cores e o que estava faltando na composição das
obras. Embora escutasse a esposa, Iberê fazia o que queria. “É, o artista, ele
não vai atrás do que os outros dizem, nem nada. É dele, aquilo”, dizia
Maria.
Mais do que companheira, Maria
Coussirat Camargo era a verdadeira guardiã da obra do pintor. Foi dela a
ousadia de erguer a Fundação que mantém o legado do artista.
“A afinidade com a arte, que
uniu Iberê e Maria Coussirat Camargo, se apresenta na exposição Iberê Camargo -
Território das Águas de modo singular, pois ambos ocupam o mesmo espaço, cada
um com sua experiência artística. Ela deixou a pintura, fez a sua escolha de
ficar nos bastidores, mas sempre presente”, afirma Blanca Brites.
O quinto afluente
100 anos depois
Batizado de Chafariz do Imperador, também conhecido
como Guaíba e Seus Afluentes, o monumento foi instalado em 1866 na Praça da
Matriz pela Companhia Hidráulica Porto-Alegrense, a fim de prover a cidade com
uma fonte de água potável, além de ornamentar o logradouro.
A obra era composta por uma
base circular rodeada por uma balaustrada iluminada, um chafariz com três
bacias superpostas e quatro estátuas alegóricas representando os rios afluentes
da bacia do Guaíba: Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí. Os afluentes Caí e Sinos eram
representados por duas Ninfas, e os rios Jacuí e Gravataí, por dois
Netunos.
Uma quinta estátua estava
colocada no topo do chafariz, com a figura de um jovem com um barrete frígio na
cabeça e segurando um estandarte, inspirada na iconografia da Liberdade para
representar o Guaíba. E era voltada para ele que a estátua estava
posicionada.
O Chafariz do Imperador
permaneceu na Praça da Matriz até 1907, quando teve que ceder espaço para a
construção do monumento a Júlio de Castilhos.
O conjunto, então, foi
desmantelado e removido pela Companhia, que colocou as peças em seus depósitos.
Em 1924, o marmorista Carlos Zielinsky comprou as peças, ainda quase todas
intactas, para reduzi-las a pó de mármore ou aproveitá-las para algum mausoléu
fúnebre.
Tomando ciência da destruição
iminente, um cidadão anônimo iniciou uma campanha no jornal Correio do Povo, a
fim de que o conjunto fosse preservado. O caso ganhou tanta repercussão que o
então intendente Otávio Rocha adquiriu o material, prometendo reinstalar em
outro local.
Em 1935, pelas celebrações do
centenário da Revolução Farroupilha, a Praça Dom Sebastião foi reurbanizada e
recebeu quatro das cinco estátuas originais.
Em 1983, as quatro estátuas
foram novamente para um depósito da prefeitura de Porto Alegre, onde ficaram
até 1996, quando retornaram à praça. Após anos de abandono, vandalismo e ação
do tempo, elas foram restauradas e instaladas no seu local atual, os jardins da
Hidráulica Moinhos de Vento do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae),
onde teriam maior visibilidade. Outra razão importante foi recuperar sua
história, ligada ao abastecimento de água potável na cidade de Porto
Alegre.
Entendendo a importância da
quinta estátua, justamente a que representava o Guaíba, a Fundação começou uma
saga em busca dela, para incluí-la na exposição Iberê Camargo – Território das
Águas.
Os curadores Blanca Brites e
Gustavo Possamai lembram como era próxima a relação do artista com o Guaíba:
“Incluir esta escultura alegórica é uma maneira especial de reverenciar Iberê,
que sempre manifestou apreço pelas águas que banham a cidade, além de chamar a
atenção para a necessidade de preservação do patrimônio artístico e cultural,
que guarda as memórias de Porto Alegre. Com os acontecimentos recentes pelo
qual passamos, em que as águas voltaram ao seu leito natural, ultrapassando
margens impostas por aterros, lembramos de uma preocupação constante de Iberê:
quando serão devolvidas as margens ao Guaíba? ‘Há pouca terra no mundo,
precisam do espaço do rio’, chegou a dizer.”
SERVIÇO
Exposição Iberê Camargo – Território das Águas
Curadoria: Blanca
Brites e Gustavo Possamai
Abertura: 14 de setembro | Sábado | 14h | Quarto
andar
Visitação: 23 de fevereiro | Domingo
Endereço: Avenida Padre Cacique, 2000 – Cristal
No dia da abertura, a entrada
é gratuita
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