Um paciente querido teve um diagnóstico avassalador de um Câncer no Intestino, com metástases no Fígado. Foi fazer cirurgias nos Estados Unidos para remoção de tumores e, na época, a implantação de uma bomba de quimioterapia diretamente nos tumores do Fígado. No meio da cirurgia deu a louca no cirurgião, ele removeu mais da metade do Fígado do paciente, que se recuperou muito bem. Voltou para o Brasil para mais quimioterapia, agressiva como sua doença. Veio passar em consulta por sintomas de irritabilidade, fadiga e cansaços intensos, além de dor em feridas e aftas na boca. Ele contou as aftas: eram vinte e três. Quando se agoniava com a dor e desconforto, era censurado pelas pessoas pela sua falta de positividade. “Pensamento positivo”! Diziam, sem nenhuma afta na boca. Outra coisa que o irritava eram as frases “Vai dar tudo certo” e, pior ainda, “Já deu certo”. Ele enfrentou a sua doença como um leão ferido lutando por sua vida, aceitava todo tipo de tratamento e procedimento. Por coragem ou por desespero, enfrentou cada passo de uma situação muito grave sem titubear. E precisava ouvir, de quem nem imaginava o que estava passando, que precisava de “Pensamento Positivo”.
Aliás, já faz algum tempo que o tal do Pensamento
Positivo vem sendo questionado pelos estudos. A tal da frase “Já deu certo”,
por exemplo. Os estudos mostram que mais atrapalha do que ajuda. Pensamentos do
tipo: sou o homem mais bem sucedido do mundo, tenho tudo o que quero, sou um
imã de dinheiro, que você pode ver nas Redes Sociais e no Youtube, geram dois
tipos de problemas: seu Cérebro não é bobo. Não adianta olhar no espelho e
dizer: “me sinto muito bem”, quando na verdade você está se sentindo muito mal.
Falar “já deu certo” cria um paradoxo que diminui a motivação e capacidade de
realização da pessoa. Para o “vai dar tudo certo” é preciso que um monte de
coisas acabe dando errado. Dizer que já deu certo, estranhamente, diminui a
motivação para a busca de um resultado.
Vivemos numa época em que tudo parece estar à
distância de um clique, mas não é isso que ocorre na vida real. Para as coisas
darem certo, é preciso muita tentativa e erro, sobretudo, muito erro, o que
acaba gerando soluções e aprendizado onde menos se esperava.
Nada é mais difícil na prática clínica que as
pessoas que não se dispõe a errar. Temos gerações de jovens fragilizados que
não conseguem perceber, criticar e tolerar o processo de tentativa e erro de
qualquer aprendizado. Entendem a vida como um vídeo game que perdeu, começa de
novo. Morreu, reinicia o jogo. Não há uma perda definitiva. No filme
“Escritores da Liberdade” a professora pede para os alunos lerem “O Diário de
Anne Frank”. No meio do livro, uma aluna pergunta quando que os aliados vão
chegar e metralhar os alemães. A professora explica delicadamente que o livro é
baseado na vida real, não é um filme do Tarantino que alguém vai incinerar os
nazistas com um lança-chamas. No outro dia, a menina entra na classe chorando e
xingando: por que a professora não contou que a menina morria no final? A cena
é muito importante, porque a vídeo gamificação do mundo gera essa intolerância
à realidade. Anne Frank vai pegar uma metralhadora e vai se livrar de seus
perseguidores. Tudo vai dar certo. Não. Muitas vezes não dá certo, e a mocinha
morre no final.
Essa positividade boçal deixa as pessoas
constantemente apartadas da instância do Real. Freud falou que um dos objetivos
da Análise era colocar as pessoas em contato com a Realidade. Um
século depois, as pessoas se colocam diante da realidade como algo que pode ser
moldado pela própria vontade. Os pais dizem que seus filhos são especiais e
geniais, mesmo quando não fizeram nada que pareça genial ou especial. Lula fala
a Maduro que a percepção que seu país vive uma ditadura sangrenta é apenas uma
falha de construir uma narrativa diferente. Os milhões de imigrantes que fogem
esfomeados de sua ditadura são um problema de narrativa. A realidade, em tempos
digitais, é uma questão de narrativa.
Esse é o dilema do futuro. Para a construção de um
Futuro, é importante o aprendizado, os erros, as decepções, os fracassos, a
angústia e, por vezes, o desespero. E recomeçar, incontáveis vezes. O “vai dar
certo” pode ser facilmente trocado pelo: “vamos fazer dar certo, de um jeito ou
de outro”. Para isso, vamos fazer por onde. A atitude positiva, a estimativa do
trabalho necessário para chegar lá e o trabalho constante valem mais do que um
caminhão de pensamentos positivos.
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em
psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação younguiano
e autor do livro Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa.
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