Em 2021, foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o projeto de lei que amplia o número de doenças detectadas pelo teste do pezinho no SUS. O exame que é feito por meio da coleta de gotas de sangue dos pés de recém-nascidos e pode identificar mais de 50 doenças raras, as quais afetam o desenvolvimento neurológico, físico e motor. No Brasil, estima-se que 13 milhões de pessoas tenham alguma doença rara, sendo 75% delas crianças, por isso, identificar precocemente e utilizar os tratamentos adequados desde o início é essencial para se manter a qualidade de vida dos pequenos.
A ampliação da
cobertura do teste do pezinho poderá ajudar diversas crianças no tratamento e
controle de doenças, porém, o SUS neste momento, não apresenta terapia
disponível para todas as enfermidades contempladas e, para as que há, as
terapias são obsoletas e não mais praticadas no mundo todo. Um exemplo disso é
a fenilcetonúria, também conhecida como PKU, caracterizada por ausência ou
falha da enzima responsável pelo processamento do aminoácido fenilalanina. Com
isso, ocorre o acúmulo dessa substância, que é tóxica ao sistema nervoso e pode
causar lesões permanentes, tais como deficiência intelectual, sintomas comportamentais
ou convulsões. Pacientes com fenilcetonúria necessitam de significativa
restrição dietética, devendo evitar o consumo de leite e derivados, carnes,
peixes, ovos, aves e grãos com elevado teor proteico, dieta que nem sempre é
fácil de se seguir tanto pela aderência como pelo valor de compra dos
alimentos. Embora a fenilcetonúria esteja contemplada no teste do pezinho há
mais de vinte anos, o tratamento utilizado no Brasil é o mesmo de três décadas
atrás.
Recentemente, a
CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) analisou o
pedido de expansão de utilização do dicloridrato de sapropterina para pacientes
com fenilcetonúiria acima de 5 anos. Esta medicação, ajuda no controle da
doença em aproximadamente 30%, quando bem indicada, e evita comprometimento das
funções executivas que vem sendo observado mesmo nos pacientes tratados com a
única terapia existente no Brasil, a restrição dietética. Tem sido observado
que o uso da medicação pode também regredir o déficit de atenção, muito comum
na população fenilcetonúrica, como estabilizar as alterações de humor e reduzir
os quadros de depressão altamente incidente nesses pacientes, além de facilitar
a restrição dietética, tendo grande impacto na qualidade de vida. Este
tratamento já foi disponibilizado em 2018 no SUS; porém, exclusivamente para
mulheres grávidas ou em período periconcepcional. Essa submissão da
sapropterina para o tratamento da PKU na CONITEC teve parecer negativo para a
incorporação no Sistema Único de Saúde, sendo esse resultado contraintuitivo,
pois quando se descobre uma doença, o tratamento é o primeiro passo a se
pensar, sendo incoerente disponibilizar um diagnóstico sem um recurso
terapêutico eficiente.
A diretora da
Associação Mães Metabólicas, Simone Arede, explica que o tratamento para
fenilcetonúria embora recentemente submetido à CONITEC para revisão, não o
atualizou no âmbito do SUS, rechaçando terapias mais modernas e eficazes para o
controle da doença, como por exemplo, o uso do dicloridrato da sapropterina
para pacientes responsivos à medicação, independentemente da idade, sexo ou
outra condição.
Além disso, ela
adverte sobre a falta do kit diagnóstico no teste do pezinho, pois em alguns
estados do Brasil, os resultados dos exames estão sendo liberados muito além
dos 30 dias de vida, período no qual já pode haver dano neurológico no bebê.
Ela afirma ainda que a justificativa para não ter sido aprovada a incorporação
do medicamento para os pacientes foi a falta de estudos e o seu custo elevado,
porém, em se tratando de enfermidade rara, de forma geral, os estudos da
literatura compreendem população pequena de pacientes, sendo impossível de se
ter uma grande quantidade de evidências científicas como em outras doenças
crônicas, tais como câncer ou diabetes que acometem grande parte da população.
Destaca ainda, que é
um verdadeiro contrassenso o reconhecimento da eficácia do fármaco ao feto da
gestante com fenilcetonúria, onde os estudos são mais escassos e o não
reconhecimento das evidências nos demais pacientes que respondem ao
dicloridrato de sapropterina. Simone conclui que, na verdade, a não
incorporação do remédio não passa de uma opção política discriminatória e
injusta com os demais afetados pela enfermidade, os quais para terem direito a
terapia se vêm obrigados a recorrer ao sistema de justiça, o que impacta
negativamente não só a vida da pessoa com fenilcetonúria e seus familiares como
onera os cofres públicos com compras emergenciais e com custos às vezes
estratosféricos, ao passo que com a incorporação o processo de compra passaria
necessariamente pelo menor preço, como determina a lei de licitações.
A Covid-19 prejudicou
ainda mais o seguimento dos pacientes com fenilcetonúria, conta Simone, pois
com essa doença, as pessoas necessitam fazer exercícios físicos para diminuir a
taxa da proteína circulante no sangue. Além do mais, o isolamento social
corrobora com a falta de agendamento dos exames e consultas, além de
comprometer a distribuição da fórmula metabólica fundamental para suprir as
necessidades proteicas dos pacientes, que não podem consumir proteína natural.
Para Maitê Moreira,
mãe da pequena Catarina, de 4 anos e portadora da fenilcetonúria, a utilização
da medicação sapropterina, adquirida através de processo judicial, foi um
divisor de águas e mudou totalmente a qualidade de vida da sua filha. Antes da
medicação, toda alimentação era sempre minuciosamente calculada, principalmente
para ela não se sentir diferente ou excluída socialmente. Maitê recebia o
cardápio da escola e tentava fazer o uso de alimentos parecidos com os dos
amigos, apesar do esforço, tinha momentos que não sabia o que seria oferecido,
já que uma característica marcante da dieta desses pacientes é a monotonia.
Quando Maitê conseguiu a medicação, a qualidade de vida da Catarina mudou
totalmente. A tolerância à proteína de sua filha dobrou em 6 meses do uso da
medicação, ela conseguiu introduzir farinha de trigo, ovos, leite, macarrão e
pão e, principalmente, ainda mantendo o bom controle da fenilcetonúria, o que é
importante para se evitar o dano neurológico ou manifestações psiquiátricas ao
longo da vida. Todavia, Catarina é uma exceção, pois a maioria dos pacientes
não consegue o acesso à esta medicação e nem mesmo a alimentação hipoproteica,
a qual consiste em alimentos médicos específicos sem proteína, que são muito
caros e precisam ser importados, pois não existe fabricação no Brasil.
Outro ponto que Simone
nos informa que corroborou para a não aprovação da incorporação do medicamento
para fenilcetonúria no SUS foi o seu preço elevado. Contudo, conversamos com a
Dra. Tania Bachega, Presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e
Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM), que trabalha com o diagnóstico precoce de
doenças endocrinológicas que resultam em graves complicações, nas quais, em
fases iniciais, os sinais e sintomas não são francamente perceptíveis ao se
examinar o bebê nos primeiros dias de vida. Ela nos cita o caso da Hiperplasia
Adrenal Congênita, incorporada no Programa Nacional de Triagem Neonatal em 2012.
Esta doença é caracterizada pela produção deficiente de hormônios essenciais à
vida, o cortisol e a aldosterona. Bebês afetados com a forma mais grave
apresentaram desidratação no primeiro mês de vida e aproximadamente 20 a 25%
destes evoluirão para o óbito nas primeiras semanas de vida. Embora possa
causar risco de vida, a maioria das pessoas com essa enfermidade pode levar uma
vida normal com a utilização da medicação adequada. O tratamento necessário não
é caro, porém, a hidrocortisona por ter baixo custo não é atrativa para a
indústria produzir no Brasil. Por isso, os pacientes são obrigados a usarem
medicamentos similares, que em longo prazo pode causar reações adversas. A
Deficiência da Biotinidase é outra doença que foi inserida no Programa Nacional
de Triagem Neonatal em 2012, que sem tratamento, pode evoluir para deficiência
intelectual, convulsões, surdez, alterações neurológicas, dentre outras
complicações. O tratamento desta doença é efetivo na prevenção das complicações
e envolve a reposição de biotina, que também tem baixo custo; porém, até hoje a
biotina não está sendo distribuída para todos os pacientes do SUS em todo o
Brasil.
Dra. Tânia explica que
o custo da inserção de uma medicação no SUS não deve ser avaliado de forma
isolada, mas sim em conjunto ao custo do tratamento de complicações em
pacientes sem o uso da medicação, o que frequentemente é ainda mais elevado,
mesmo sem se avaliar o impacto na qualidade de vida dos pacientes, cujo valor é
imensurável.
Em conversa com
Denise, mãe do Gustavo de 9 anos e portador de Hiperplasia Adrenal Congênita,
ela conta que manipula o acetato de cortisona, que é um medicamento que tem
ação similar ao hormônio deficiente cortisol, mas que se ele tivesse remédio
correto para a doença evitaria muitas preocupações futuras com a saúde. Ainda
nos conta que alguns pacientes com melhor condição social e financeira importam
do Uruguai, Argentina e Estados Unidos. Porém, na pandemia a exportação ficou
suspensa e esses pacientes também precisaram recorrer a manipulação dos
medicamentos.
Mesmo sem a medicação
correta, Denise conta que o remédio similar proporcionou a vida para o filho
dela, porque após o diagnóstico e a administração correta, ele ganhou peso,
saiu do quadro de desidratação extrema com choque e teve reestabelecido seu
desenvolvimento neuropsicomotor, o que permite ter a mesma qualidade de vida
das crianças sem a doença. Com o teste do pezinho ampliado, diagnóstico precoce
e garantido o uso das medicações corretas no tempo certo, não teremos história trágicas
de bebês que perdem a vida por falta de tratamento adequado.
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