Em artigo publicado na PNAS, pesquisadores da USP e da Universidade Monash, na Austrália, descreveram proteína com ação antioxidante secretada pela espécie Coxiella burnetii e até então desconhecida. Achado aponta caminhos para tratar doenças autoimunes e até câncer
Pesquisadores da
Universidade de São Paulo (USP) e colaboradores da Austrália identificaram uma
proteína bacteriana capaz de manter as células humanas saudáveis por mais
tempo. A descoberta pode levar a novos tratamentos para uma variedade grande de
doenças relacionadas com a disfunção mitocondrial (isto é, o mau funcionamento
da mitocôndria, organela produtora de energia para a célula), como câncer e
doenças autoimunes.
No estudo, publicado na revista PNAS,
os pesquisadores identificaram que entre as mais de 130 proteínas liberadas
pela bactéria Coxiella burnetii ao invadir a célula do
hospedeiro pelo menos uma tem a capacidade de prolongar a longevidade celular a
partir de uma ação direta sobre a mitocôndria.
Após a invasão da
célula hospedeira, a C. burnetii libera uma proteína até então
desconhecida, que foi denominada pelos autores MceF (sigla em inglês para
mitochondrial coxiella effector F). A molécula interage com a GPX4 (glutationa
peroxidase 4), uma enzima localizada na mitocôndria. Dessa forma, a bactéria
promove a sobrevivência da célula em que está hospedada, já que MceF melhora a
função mitocondrial ao promover um efeito antioxidante e retardar o dano e a
morte celular – que pode ocorrer quando patógenos se replicam no interior das
células de mamíferos.
“A C.
burnetii utiliza diversas estratégias para que a célula invadida não
morra e, assim, consegue se replicar dentro dela. Uma delas é a modulação da
proteína GPX4 pela MceF – mecanismo que descobrimos neste trabalho. A
realocação dessas proteínas na mitocôndria celular permite que as células de
mamíferos vivam por mais tempo mesmo estando infectadas e com uma carga
bacteriana muito alta”, explica Dario Zamboni,
professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e um dos
autores correspondentes do artigo.
O estudo foi feito
no âmbito do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID) – um Centro de
Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP –, em colaboração com a
professora Hayley Newton, da Universidade Monash, na Austrália. A investigação
também contou com financiamento por meio de um projeto coordenado
por Zamboni.
“Basicamente,
encontramos uma estratégia usada pela C. burnetii para manter
a célula saudável por mais tempo enquanto ela se replica intensamente.
Observamos que a bactéria redireciona – por meio da proteína MceF – a enzima da
própria célula hospedeira [GPX4] para a mitocôndria, de modo a atuar como um
potente antioxidante para a célula infectada, o que impede o envelhecimento de
componentes celulares”, explica Robson Kriiger Loterio,
primeiro autor do estudo, que é fruto de seu doutorado.
Biologista
celular
A C.
burnetii é a causadora da chamada febre Q, uma zoonose relativamente
comum, mas pouco diagnosticada. A bactéria causa uma pneumonia atípica em
humanos, além de coxiellose em diversos animais. Zamboni explica que esse
patógeno é altamente adaptado para infectar macrófagos e monócitos (glóbulos
brancos que atuam na linha de frente da resposta imune), inibindo uma série de
respostas do hospedeiro contra a infecção.
“O interesse em
estudar essa bactéria mais a fundo está justamente no fato de ela subverter as
funções da célula. Diferentemente de outras bactérias, que só causam doenças
quando já estão em grande número nos indivíduos, apenas uma C. burnetii já
é o suficiente para adoecer uma pessoa saudável. Então, ela atua de maneira
eficiente para modular as células invadidas. Brincamos que ela é uma biologista
celular nata, capaz de modular tudo nas células hospedeiras”, conta Zamboni.
Outro aspecto
interessante da C. burnetii, segundo o pesquisador, é que ela
permanece cerca de uma semana se replicando dentro da célula. A título de
comparação, a Salmonella (causadora de intoxicações
alimentares graves) provoca a morte das células hospedeiras em menos de 24
horas.
“Observá-las
[as Coxiellas] é uma ótima maneira de aprender sobre o
funcionamento celular. No caso deste estudo, nos ajudou a entender como
melhorar disfunções mitocondriais e nos deu insights sobre a
morte programada de células humanas”, afirma o pesquisador.
No trabalho, os
pesquisadores analisaram a capacidade da bactéria de subverter macrófagos e
atuar diretamente na mitocôndria celular a partir de estudos in vitro e in
vivo, utilizando larvas de uma espécie de mariposa chamada Galleria
mellonella. Nessa primeira fase do estudo eles investigaram mais de 80
proteínas novas de Coxiella que apresentam potencial de
interagir com a célula hospedeira e subverter seu funcionamento. “Focamos nossa
investigação na MceF por ela atuar diretamente na mitocôndria, uma organela que
é muito importante para regular o processo de morte celular”, explica Zamboni.
O grupo pretende
agora trabalhar em duas novas frentes: aprofundar o entendimento sobre as outras
proteínas de interesse e realizar mais estudos bioquímicos para compreender
como a MceF influencia a proteína celular GPX4.
"O bonito
desse trabalho é que, a partir de estudos com uma bactéria, podemos aprender
mais sobre sinalização, morte celular e novas maneiras de reverter a disfunção
mitocondrial. Não precisa inventar uma nova técnica, o processo já ocorre
durante a interação entre essas bactérias com as células”, diz.
O artigo Coxiella
co-opts the Glutathione Peroxidase 4 to protect the host cell from oxidative
stress–induced cell death pode ser lido em: www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2308752120.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-revela-proteina-bacteriana-capaz-de-manter-a-celula-humana-saudavel-por-mais-tempo/44791
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