Em julho, uma notícia abalou o mercado de cannabis medicinal brasileiro: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu expressamente a importação de cannabis in natura, bem como flores e partes da planta, para uso pessoal e medicinal, através da Nota Técnica 35/23. A agência reguladora considerou que a regulamentação atual dos produtos de cannabis no Brasil não inclui a permissão de uso de partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem ou nas formas rasuradas, trituradas ou pulverizadas.
A medida frustrou pacientes e empresas intermediadoras, que
enxergaram retrocesso na luta pelo acesso à cannabis medicinal no Brasil.
O segmento de cannabis medicinal é composto em sua maioria
por empresas que ajudam pacientes na importação direta de produtos de cannabis,
mediante prescrição médica (RDC 660). A estrutura regulatória excepcional não é
nova e nem exclusiva de produtos de cannabis. Repousa no campo de uso
compassivo de medicamentos órfãos, que não possuem registro na Anvisa. Com o boom
da cannabis no Brasil, os pedidos de importação por pessoa física tiveram um
salto expressivo.
Dados indicam que, somente em junho deste ano, foram mais de
13,5 mil pedidos atendidos para pacientes que buscavam importar os produtos.
Entre julho de 2021 e junho de 2022, foram 58.292 pedidos atendidos. Já nos 12
meses entre julho de 2022 e junho deste ano, foram 112.731 autorizações, um
aumento de 93%.
O principal argumento do setor é que a RDC 660 foi
promulgada pela Anvisa para cumprir uma ordem judicial: a sentença proferida em
2018 em ação civil pública iniciada em 2014 pelo Ministério Público. A sentença
compeliu a agência a permitir o acesso a produtos de cannabis medicinal,
incluir a cannabis na lista de produtos controlados lícitos da P. 344/98 e
permitir pesquisa cientifica. No entanto, a decisão judicial não é definitiva,
visto que ainda carece de análise de segunda instância, pelo Tribunal Regional
Federal da 1a Região. Longe, portanto, de ter transitado em julgado para não
ser mais passível de recursos judiciais.
Pois bem. Diante da proibição de flores, o mercado entendeu
haver descumprimento daquela determinação judicial.
Três processos judiciais, que pretendem ter alcance
coletivo, buscam reverter a determinação da Anvisa. Uma ação popular
independente, e pelo menos dois incidentes de cumprimento de sentença,
manejados na própria ação civil pública de 2014.
E é aqui que entra a desinformação. Ávidos por publicar
notícias positivas para o setor de cannabis, canais de mídia especializados no
tema passaram a dar vazão a interpretações equivocadas das ações judiciais que
discutem o tema.
Nos cumprimentos de sentença, o juiz apenas despachou
intimando a Anvisa para se manifestar sobre eventual afronta à sentença de
2018. Noticiaram que a justiça teria determinado que a agência permitisse a
entrada no país de flores in natura de cannabis. Não é verdade, pois a decisão
apenas intimou a Anvisa para cumprir a sentença de 2018, que se consubstancia
em obrigação de fazer: incluir em seu arcabouço regulatório instrumentos
concretos que permitissem o acesso de pacientes a produtos derivados de
cannabis medicinal.
Ao contrário da obrigação de pagar quantia em dinheiro, que
tem caráter mais concreto, objetivo e tangível, a obrigação de fazer tem
natureza mais subjetiva, aberta a interpretações. A propagação de que a decisão
seria irrecorrível deu aos pacientes medicinais a impressão de que o assunto
estava resolvido, por meio das demandas judiciais. Também induziu a erro os
mais incautos, que acreditaram que no final de setembro, a Anvisa seria
obrigada a voltar a autorizar a importação de flores. Em 20 de setembro termina
o prazo dado pela ANVISA para pacientes concluírem os trâmites iniciados antes
de 19 de julho.
Ao contrário, não há nenhuma perspectiva de solução judicial
a curto prazo para esses pacientes. A ação popular, em trâmite perante a 1ª
Vara Federal do Distrito Federal, encontra-se suspensa para aguardar o
julgamento da ação civil pública.
Já as iniciativas que pedem o cumprimento da sentença ainda
não foram decididas pela 16ª Vara Federal. A Anvisa se manifestou, dizendo que
a cannabis não pode ser tratada como chá medicinal, que a Receita Federal
sinalizou casos de importações suspeitas, que os proponentes das ações não são
parte legitima para exigir o recuo da Agência, anexando notícias de propaganda
irregular de cannabis em flor. Defendeu ainda que não descumpriu a sentença,
visto que a RDC 660 existe justamente para cumprir a ordem judicial, e que a
rigor o mecanismo deveria atender pacientes com doenças graves e
debilitantes.
A judicialização canábica tem sido uma rota frequentemente
percorrida por pacientes e defensores da cannabis medicinal em busca de
tratamentos alternativos. Essa prática tem levado a decisões contraditórias nos
tribunais, evidenciando a precariedade nas leis e regulamentos que regem a
cannabis medicinal no Brasil. As decisões judiciais diferentes promovem um
fenômeno curioso: enquanto um paciente ou empresa consegue o direito, outros
não tem a mesma sorte.
A segurança jurídica do tema ainda é incerta, instável e
provisória. Dizer o contrário é temerário. A desinformação inflamada por alguns
atores desse drama confunde ainda mais aqueles que dependem dos tratamentos, os
médicos que prescrevem, e as empresas que apoiam pacientes no acesso a
tratamentos de saúde.
Por outro ângulo, a judicialização certamente desempenha um papel importante em avanços legais. As decisões judiciais têm contribuído para a conscientização do governo sobre o potencial terapêutico da cannabis e para a pressão por regulamentações mais abrangentes, coerentes e inclusivas. Através dos casos judiciais, alguns pacientes conseguiram acesso a tratamentos que de outra forma seriam inacessíveis, gerando precedentes que impactam positivamente a legislação e as políticas públicas.
Claudia de Lucca Mano - advogada e consultora empresarial, atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios. Fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann
Nenhum comentário:
Postar um comentário