Após quase dois anos de vigência da Lei n.º 14.155, de 27 de maio de 2021, que se destinou a dar resposta ao cenário da cibercriminalidade indissociável à sociedade da informação, o Estado brasileiro então ampliou as penas para crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet de forma mais gravosa. Porém, pouco se discute a respeito das problemáticas advindas com a referida Lei.
A Lei n.º 14.155/2021 não só chama a atenção em relação ao agravamento excessivo e dispensável dos “crimes realizados pela internet”, há também uma incongruência estrutural destas tipificações, como é o caso da fraude eletrônica (Art. 171, § 2º-A, Código Penal), por meio do qual revelou, com a máxima vênia, a inaptidão do legislador ao se relacionar com os crimes informáticos.
De início, a razão pela qual a fraude eletrônica foi integrada ao delito de estelionato (art. 171 do CP) se deve à tipicidade da conduta. Para a configuração do crime de estelionato, é necessário o resultado da combinação de uma vantagem indevida e o dano de outrem (da vítima ou de terceiro)[1]. O tipo penal em questão, também tutela o bem jurídico patrimônio e há a presença da dupla relação causal: o engano por meio de fraude, o erro como causa e a obtenção de uma vantagem ilícita.
Art. 171§2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo[2].
No caso da fraude eletrônica, a redação se assemelha (em parte) ao disposto no caput do artigo 171 do CP, ao repetir o termo “qualquer outro meio fraudulento”, que anteriormente abrangia todas as formas de comissão do delito. O que o legislador fez em relação ao novo tipo penal foi delimitar o meio/espaço de cometer a fraude, condicionando maior grau de reprovabilidade, ao se referir "por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento”.
A tentativa de inovação legislativa, de modo a acompanhar as novas modalidades de crimes configurou-se, portanto, em uma prolixidade do legislador, pois a obtenção de vantagem ilícita realizada "por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento”, poderiam ser interpretadas a partir da parte final do caput do art. 171 do Código Penal.
Ao analisar as terminologias empregadas pelo legislador no que diz respeito aos meios da fraude eletrônica temos: i) Por meio de redes sociais: que delimita o espaço digital onde será punido o comportamento delitivo com a pena agravada; ii) Contatos telefônicos: nota-se um engano ao utilizar “contatos telefônicos”, uma vez que, para essa ação é dispensável estar conectado à rede mundial de comunicação, ou seja, a internet; iii) Envio de correio eletrônico fraudulento: que é uma das formas de engenharia social utilizada para cometimento do ilícito, uma espécie do gênero, nesse caso o Phishing e; iv) Por qualquer outro meio fraudulento ou análogo: remonta a mesma redação utilizada pelo caput do artigo 171 do CP, sem promover a inovação pretendida com implementação do respectivo delito, que seria incorporar a manipulação informática como núcleo do tipo, dessa forma, ampliaria o rol de condutas utilizadas pelos criminosos digitais.
Por outro lado, observa Fernando Brandini Barbagalo, que “a elementar "fraude" não se apresenta como verbo ou tempo verbal a designar ação ou comportamento humano. A elementar apresenta-se como um substantivo, ou seja, "qualquer ato ardiloso, enganoso, de má fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem”[3].
Diferentemente de como foi estruturado o furto mediante fraude eletrônica (art. 155, § 4º-B, CP) em que a redação faz expressa conexão do núcleo do tipo “furto” à sua forma qualificada “se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores”, não deixa lacuna de interpretação referente ao tipo penal e sua qualificadora. Entretanto, a redação da fraude eletrônica apresenta essa brecha, que pode vir a ser objeto de muitos conflitos jurídicos.
Segundo Fernando Brandini Barbagalo ao criar um tipo penal (fraude eletrônica) com definição inserida em outro (estelionato), criou-se a confusão, pois, diferentemente de outros países (Itália, por exemplo), nós não possuíamos um delito autônomo de fraude. O estelionato, segundo a legislação brasileira, não é simplesmente o cometimento de fraude, mas a obtenção de vantagem indevida (consumada ou tentada) por meio dela[4]. Nesse sentido Nelson Hungria[5] asseverava que, o termo fraude somente poderia servir de título a um crime suis generis, se se reconhecesse a necessidade de especial proteção penal.
Ou seja, uma das críticas em relação ao disposto no art. 171, §2º -A, do Código Penal, parte da premissa de que o termo “fraude” não pode ser utilizado como núcleo do tipo. O equívoco do legislador empregá-la como substantivo, não há comando verbal que faça menção ao estelionato. Para a ocorrência da fraude eletrônica é exigido, em contrapartida uma conduta positiva da vítima ao fornecer suas informações. O correto seria ter a mesma construção do furto mediante fraude, com remissão expressa ao estelionato, por exemplo, "se o estelionato é cometido"; ou utilizar os núcleos penais que compõem o estelionato "se a obtenção de vantagem indevida é obtida"[6].
Outro ponto a ser questionado está na semântica no que concerne ao nomen iuris “fraude eletrônica”, o legislador utiliza o termo eletrônica ao invés de informática. O termo eletrônica está associado à eletrônica, relacionado ao elétron ou à estrutura eletrônica dos átomos. Para fazer jus à natureza desses crimes, o correto seria usar a palavra informática ou ainda digital, o que nos dá uma ideia clara de que está relacionada às informações que são transmitidas e armazenadas na rede (internet). De acordo com as definições encontradas nos dicionários, a palavra informática refere-se ao conjunto de conhecimentos científicos e técnicas que possibilitam o processamento automático de informações por meio de computadores.
Por fim, a criminalidade
virtual segue aumentando não devido à ausência de tipificação adequada, ou que
os efeitos simbólicos e instrumentais da norma não surtam mais efeito aos
destinatários. Diante do contexto de aumento exponencial a nível global dos
ciberdelitos, urge a necessidade de uma rede de enfrentamento especializada na
prevenção dos respectivos crimes digitais, o que não restringe apenas ao
legislador. O objetivo do presente artigo busca tão somente fomentar o debate
jurídico e acadêmico a respeito dos conflitos de ordem processual que a
lacunosa Lei 14.155/2021 podem acarretar.
Emanuela de Araújo Pereira - advogada criminalista e mestre em
Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidade de Sevilha – Espanha.
[1] Gilaberte, Bruno; Marcus Montez, M. (2021). A Lei nº 14.155/2021 em análise: invasão de dispositivo informático, furto eletrônico, fraude eletrônica e competência. Disponível em: https://profbrunogilaberte.jusbrasil.com.br/artigos/1229253925/a-lei-n-14155-2021-em-analise-invasao-de-dispositivo-informatico-furto-eletronico-fraude-eletronica-e-competencia#_ftnref1.
[2] BRASIL. Lei nº 14.155, de
27 de maio de 2021. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), para tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo
informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela
internet; e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo
Penal), para definir a competência em modalidades de estelionato. Brasília:
Congresso Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14155.htm.
Acesso em: 03 fev. 2023.
[3] Barbagalo, Fernando
Brandini. O novo crime de fraude eletrônica e o princípio da legalidade.
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/o-novo-crime-de-fraude-eletronica-e-o-principio-da-legalidade.
[4] Ibid.
[5] Hungria, Nelson. (1955).
Comentários ao Código Penal. Vol. VII, arts. 155 a 196. Revista Forense.
[6]Barbagalo, Fernando
Brandini. O novo crime de fraude eletrônica e o princípio da legalidade.
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/o-novo-crime-de-fraude-eletronica-e-o-principio-da-legalidade.
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