Os átomos mostram-se localmente como se estivessem isolados uns dos outros, mas por causa de correlações quânticas não locais a estrutura ainda apresenta um caráter molecular. Resultado foi obtido em estudo teórico conduzido na Unesp (imagem: Antonio Seridonio/Unesp
A “twistrônica” é uma variante da eletrônica que descreve o que acontece quando duas folhas de grafeno, quase bidimensionais, são empilhadas e, mantido o empilhamento, uma delas é girada sobre a outra. Quando a torção (twist em inglês) entre as folhas atinge um ângulo específico, chamado de “ângulo mágico”, que vale cerca de 1,1 grau, a bicamada torcida de grafeno (TBG, do inglês twisted bilayer graphene) passa a apresentar uma competição de dois comportamentos antagônicos: isolante e supercondutor.
O fenômeno foi obtido
experimentalmente por um grupo de pesquisadores liderado por Pablo
Jarillo-Herrero no Departamento de Física do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), Estados Unidos. E descrito em artigo
https://www.nature.com/articles/nature26160 publicado na revista Nature em 2018.
Um novo estudo, desta vez teórico,
obteve, no lugar dos estados isolante e supercondutor, um outro estado
possível: o metálico. O trabalho foi realizado com apoio da
FAPESP pela equipe coordenada pelo professor Antonio Seridonio no
Departamento de Física e Química da Universidade Estadual Paulista (DFQ-Unesp),
em Ilha Solteira. Os resultados foram recentemente publicados no
periódico 2D Materials.
“No estado
isolante, tecnicamente chamado de ‘estado isolante de Mott’, a interação
elétron-elétron é repulsiva e dominante. A repulsão dificulta o transporte
eletrônico pelo sistema e isso caracteriza a condição de isolamento elétrico.
Já no estado supercondutor, ocorre um comportamento contraintuitivo, que é a
atração entre os elétrons. Isso gera um novo portador de carga, o chamado ‘par
de Cooper’, composto por dois elétrons que fluem juntos pelo material sem
dissipação de energia, o que define a supercondutividade”, explica Seridonio.
E continua: “No estado metálico,
considerado em nosso trabalho, o TBG não apresenta um gap entre a banda eletrônica de valência [aquela
preenchida por elétrons] e a banda eletrônica de condução [aquela que apresenta
espaços vazios]. Porém, como o material tem um número periódico de átomos, seus
espectros discretos de energia se superpõem e dão origem a espectros contínuos,
com energias infinitamente próximas umas das outras.”
Para
melhor caracterizar esse estado metálico, o estudo considerou a adsorção de
impurezas na super-rede de moiré gerada pelo movimento relativo das duas
folhas. O termo “moiré”, de origem francesa, vem da tecelagem e designa um tipo
de tecido de padrão ondulado. Em física, é usado para nomear os padrões de
interferência que se formam quando duas redes são sobrepostas e rotacionam uma
em relação a outra. A expressão “super-rede” é utilizada no caso porque esse
padrão de interferência se apresenta em uma escala de tamanho muito maior do
que a da rede de grafeno [figura A].
“O que
encontramos foi um novo tipo de ligação molecular covalente. A ligação
covalente usual é aquela em que átomos da molécula compartilham elétrons devido
à superposição de seus orbitais atômicos. Porém, na ‘torção mágica’ da bicamada
de grafeno, esse cenário se modifica drasticamente quando um campo elétrico é
aplicado ao sistema. O campo quebra a simetria de inversão dos ‘cones de Dirac’
e possibilita a emergência de um estado molecular atomicamente frustrado.
Neste, os átomos mostram-se localmente como se estivessem isolados uns dos
outros, mas, por causa de correlações quânticas não locais mediadas pela
super-rede de moiré, eles ainda apresentam um caráter molecular”, informa
Seridonio.
Aqui, é
preciso abrir um parêntese para explicar o significado dos “cones de Dirac”.
Assim nomeados em referência ao físico britânico Paul Dirac (1902-1984), que
deu contribuições fundamentais para o desenvolvimento da mecânica e da
eletrodinâmica quânticas, essas superfícies cônicas, semelhantes a ampulhetas,
descrevem as configurações eletrônicas de certos materiais, como o grafeno e
outros, em níveis específicos de energia. As metades superior e inferior da
ampulheta representam cones que correspondem às bandas de condução e de
valência, respectivamente. Estas só se encontram nos pontos centrais, chamados
de “pontos de Dirac”.
“Para
entendermos melhor o papel dos cones de Dirac e do campo elétrico no
aparecimento da ligação molecular que encontramos em nosso estudo é
interessante fazer uso de uma analogia. Imaginemos os cones de Dirac como as
duas metades de uma ampulheta com seus vértices unidos em um único ponto. Esse
ponto é o marco zero de energia, onde só cabe um grão de areia, mas que se
encontra vazio no início, devido à ausência de um campo elétrico externo.
Chamamos esse ponto vazio, sem grão, de ‘pseudogap’ ou ponto de Dirac”, afirma
Seridonio.
E
prossegue: “O cone superior, de ponta-cabeça, faz o papel da banda de condução
e está equilibrado pelo vértice do cone inferior, que emula a banda de
valência. Esse último cone, por sua vez, encontra-se plenamente preenchido por
areia até uma altura logo abaixo do ‘pseudogap’ e representa o número ideal de
elétrons do sistema. Como temos duas folhas de grafeno formando o TBG, há duas
ampulhetas nessa condição [figura B]. No ‘ângulo mágico’, é como se as
ampulhetas ficassem perfeitamente achatadas, pois a inclinação dos cones
torna-se zero. O campo elétrico fecha o ‘pseudogap’, preenchendo-o com areia, e
o achatamento dos cones comprime todos os níveis de energia moleculares nesse
ponto, onde só cabe um grão, que corresponde ao nível de energia zero [com o
achatamento total dos cones, sua representação gráfica fica reduzida a uma
linha horizontal; a figura C mostra uma situação de transição, em que os cones
aparecem achatados, mas não completamente].”
O
pesquisador acrescenta que, estando os cones achatados, a configuração
eletrônica não sai do nível zero de energia. Todo o espectro molecular é
reduzido a um único estado quântico de energia zero. E torna-se robusto nesse
sentido. A molécula “tenta” dissociar-se em átomos independentes, mas “não
consegue”, pois os níveis de energia encontram-se altamente “espremidos” pelo
colapso dos cones de Dirac. Assim, a molécula se torna “atomicamente
frustrada”.
“Esse tipo
de configuração é chamado de ‘modo zero de energia’. E, se o aumento
progressivo da magnitude do campo elétrico não for capaz de remover esse modo,
que fica cravado no zero indefinidamente, ele se torna imune a perturbações
externas e é considerado ‘robusto’. A robusteza é um dos principais requisitos
para a realização de uma computação quântica topológica”, ressalta Seridonio.
O estudo em pauta, coordenado por
Seridonio, faz parte da pesquisa de doutorado de William Nobuhiro Mizobata,
autor principal do artigo e aluno da Pós-Graduação em Ciência dos Materiais do
DFQ-Unesp. Contou com a participação dos doutorandos José Eduardo Cardoso
Sanches e Willian Carvalho da Silva, além do mestre Mathaus Penha e do
graduando Carlos Alberto Batista Carvalho. Colaboraram ainda os
professores Valdeci Pereira Mariano de Souza (Unesp
de Rio Claro) e Marcos Sérgio Figueira da Silva (Universidade Federal
Fluminense – UFF).
O artigo Atomic frustration-based twistronics pode ser
acessado em: https://iopscience.iop.org/article/10.1088/2053-1583/ac277f.
Também está disponível no repositório arXiv: https://arxiv.org/abs/2110.04909.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/torcao-de-bicamada-de-grafeno-gera-um-novo-tipo-de-ligacao-molecular/38624/
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