Estima-se que ocorrem cerca de 5,4 milhões de acidentes ofídicos por ano no mundo
A cada hora cerca de 15 pessoas morrem no mundo devido ao
envenenamento por picada de cobra, a mais mortal doença tropical negligenciada,
que afeta sobretudo os mais pobres
As picadas de cobras são um problema de saúde pública
negligenciado em muitos países tropicais e subtropicais. De acordo com a
Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada ano ocorrem cerca de 5,4 milhões de
acidentes ofídicos, causando entre 1,8 e 2,7 milhões de casos de envenenamento,
dos quais entre 81 e 137 mil resultam em mortes e aproximadamente três vezes
mais levam a amputações e outras incapacidades permanentes. O envenenamento por
mordida de cobra, leishmaniose e tripanossomíase africana estão entre as Doenças
Tropicais Negligenciadas (DTN) que causam mais mortes em todo o mundo. Embora
evitável, a morte por mordida de cobra precisa de uma resposta rápida, mas
infelizmente para a maioria das vítimas, o acesso aos cuidados é muito difícil.
Além disso, há fatores socioeconômicos e culturais que influenciam na busca por
tratamento e fazem com que muitas vítimas optem por práticas tradicionais em
vez de recorrerem ao atendimento hospitalar. A maioria dos casos ocorre na
África, Ásia e América Latina. Na Ásia, até dois milhões de pessoas são
envenenadas a cada ano, enquanto na África há uma estimativa de 435 mil a 580
mil que precisam de tratamento anualmente. Os acidentes tendem a ocorrer em
mulheres, crianças e trabalhadores rurais de comunidades pobres em países de
baixa e média renda, com sistemas de saúde precários e poucos recursos médicos.
Os efeitos são geralmente mais graves em crianças, que têm menos massa
corporal.
O Professor Emérito do Instituto Clodomiro Picado e da
Faculdade de Microbiologia da Universidade da Costa Rica, Dr. José María
Gutiérrez admite que o envenenamento por serpentes é um relevante problema de
saúde pública no país, assim como no restante da América Central. Segundo ele,
na Costa Rica, ocorrem cerca de 500 casos de acidentes ofídicos por ano, o que
corresponde a uma incidência de 10 casos por 100.000 habitantes. Entre eles,
entre uma e quatro pessoas morrem anualmente como consequência desses
envenenamentos. “Um número desconhecido de pessoas ainda desenvolve sequelas
físicas e psicológicas, aspecto que precisa ser mais estudado e gerenciado.
Grande parte dos casos ocorre nas planícies úmidas do Pacífico Sul, Caribe e
regiões do norte do país, afetando predominantemente os trabalhadores de saúde
rurais”, acrescenta. A maioria dos acidentes, e os mais graves, são causados
pela espécie de viperídeo Bothrops asper, conhecida localmente como
terciopelo.
O Dr. Abdulrazaq Habib, médico de doenças infecciosas e
tropicais e epidemiologista da Universidade Bayero, Kano, Nigéria, reconhece
que na África Ocidental a picada de cobra também é um grande problema médico,
responsável por substancial morbidade, mortalidade e carga de saúde pública.
“Na sub-região, estima-se que cerca de 5 mil pessoas morrem anualmente dela. A
carga é maior na savana da Nigéria, Gana, Burkina Faso, Camarões, Costa do
Marfim e Níger. Os outros países também relatam morbidade e mortalidade”,
frisa. Ainda segundo ele, o tema foi negligenciado e não teve recursos
proporcionais alocados para o seu controle, apesar de representar uma carga
modestamente alta na sub-região da África Ocidental. “Os governos da África
Ocidental não responderam ao problema. Embora existam prioridades concorrentes
nesses países, os recursos alocados permanecem excessivamente pequenos quando
comparados a outras doenças com similar ou até mesmo menor peso, por exemplo,
úlcera de Buruli, infecções por nematoides intestinais, leishmaniose,
oncocerquíase, tracoma e tripanossomíase”, lamenta o Dr. Abdulrazaq ao
complementar que o financiamento é um grande desafio e deve ser
substancialmente aumentado para melhorar o cuidado e a pesquisa. Em 2020,
um estudo publicado na PLoS Neglected Tropical Disease, tendo
o Dr. Abdulrazaq como autor principal, revelou que a Nigéria precisaria gastar
cerca de 63 vezes mais em medicamentos para picada de cobra, enquanto Burkina
Faso precisaria aumentar seus gastos em mais de 11 vezes para atingir as metas
acordadas pela OMS.
No Nepal, segundo o Dr. Sanjib Kumar Sharma, Professor de
Medicina Interna do Instituto B. P. Koirala de Ciências da Saúde (BPKIHS, na
sigla em inglês), em Dharan, e especialista em picadas de cobras, devido à alta
densidade de pessoas e de cobras que vivem nas planícies de Terai, no Nepal,
esse encontro leva à ocorrência frequente de picadas. Além disso, o hábito de
dormir no chão também predispõe os moradores a acidentes noturnos. Existem
várias espécies de cobras altamente venenosas no Terai, como Naja naja (cobra
comum), Ophiophagus hannah (cobra real), Bungarus caeruleus (krait
indiano comum), Bungarus fasciatus (krait bandado) e Daboia
russelii (víbora de Russell, restrita ao oeste do Nepal).
Embora os incidentes por picadas de cobra e mortes resultantes
sejam comuns no Nepal, a questão ainda permaneça grosseiramente negligenciada e
os especialistas chamam de crise invisível à espreita. A subnotificação é um
problema comum. Para se ter uma ideia, dados do Ministério da Saúde e População
mostram apenas cerca de 20 mil internações anuais e mil mortes causadas por
picadas de cobras, enquanto o artigo publicado em março intitulado Snakebite
epidemiology in humans and domestic animals across the Terai region in Nepal: a
multicluster random survey” revela uma taxa de incidência
ajustada muito alta de picada (251 por 100.000), envenenamento (49%) e
letalidade (7,8%). “Entre as vítimas, mulheres e crianças representaram 3/4 das
mortes. Isso extrapola para 26.749–37.661 pessoas mordidas e 2.386–3.225 mortes
a cada ano – muito mais do que o estimado anteriormente”, diz o Dr. Sharma.
Ainda segundo ele, a extensão das amputações, cirurgias e sequelas
incapacitantes é impressionante. “A alta frequência de sintomas psicológicos
relatados, como ansiedade ou medo de retornar ao local do acidente, evidencia a
necessidade de apoio em saúde mental”, completa ao sublinhar que a picada de
cobra, certamente é a mais mortal das DTN, e um importante contribuinte para a
mortalidade, saúde física e mental no Nepal, como observado neste estudo
epidemiológico, o primeiro sobre o tema realizado no país que abrangeu todo o
Terai rural e aplicou uma metodologia original que incluiu a abordagem One
Health.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, em 2020,
foram registrados nos sistemas oficiais 31.395 acidentes com serpentes, dos
quais 121 levaram as vítimas ao óbito. A jararaca é responsável por 70% dos
acidentes; seguida da cascavel, cerca de 9%; surucucu 1,5%; e coral verdadeira
com menos de 1% dos registros. Grande parte desses acidentes incidem em grupos
de maior risco, como trabalhadores rurais e populações indígenas. O País se
destaca pelos acidentes ofídicos, principalmente na região amazônica. Para se
ter uma ideia, em 2016, das 26.244 notificações do tipo, mais de 8,6 mil foram
em estados do Norte, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de
Notificação do Ministério da Saúde (Sinan/MS). Atualmente são cerca de 30 mil
acidentes registrados por ano, sendo que esse número deve ser maior, uma vez
que muitos casos não são notificados. Alguns estudos realizados na Amazônia
demonstraram a existência de subnotificações, em especial em comunidades mais
distantes dos centros urbanos onde se concentram as populações mais vulneráveis
e o acidente ofídico é relativamente algo mais frequente. No Rio Grande do Sul,
o número de acidentes registrados com cascavel aumentou significativamente e a
região Serrana do Rio de Janeiro tem enfrentado uma infestação por cobras,
entre elas, a cascavel.
O professor do Centro Multidisciplinar, campus Floresta
da Universidade Federal do Acre (Ufac), Dr. Paulo Sérgio Bernarde, enfatiza que
em meio às diferentes facetas que o acidente ofídico pode demonstrar em cada região,
é fundamental que a existência de populações “invisíveis” que vivem em
comunidades relativamente mais distantes e onde o acidente é um perigo
constante, tenham atenção especial para resolução da problemática. “Essas
populações consideradas invisíveis precisam entrar para as estatísticas
epidemiológicas para que a dimensão do problema seja oficialmente notada pelos
programas de Saúde dos governos. Cabe aqui melhorias nos censos demográficos e
nas coletas de dados epidemiológicos nessas regiões onde ocorrem essas falhas.
Dessa forma as autoridades podem ser cobradas em relação às necessidades desse
público”, defende o pesquisador.
Falta de dados
Os dados epidemiológicos sobre acidentes ofídicos são
escassos. No Ceará, por exemplo, o único relatório sobre o assunto foi
publicado pela última vez em 1997. No entanto, de acordo com o Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan), mais de 13 mil acidentes ofídicos
foram registrados desde 2001 no estado. Um estudo inédito, que teve como
objetivo incentivar a implementação de políticas públicas, realizado por um
grupo de cinco pesquisadores autônomos, brasileiros, africanos e
norte-americanos, publicado na revista The International Journal of Health
Planning and Management, intitulado “Drought,
desertification and poverty: A geospatial analysis of snakebite envenoming in
the Caatinga biome of Brazil“ revelou que as picadas de cobra na
Caatinga brasileira ocorrem predominantes em áreas de baixa renda, com acesso
limitado a hospitais e a medicamentos, assim como também acontece em áreas
rurais da África Subsaariana, consideradas regiões negligenciadas. O estudo
comparou dados públicos sobre acidentes ofídicos do Sistema Brasileiro de
Vigilância Epidemiológica (Datasus), registros pluviométricos, mapas avançados
de desertificação, pastagens e informações socioeconômicas dos 184 municípios
cearenses entre 2001 e 2017. Durante o período de investigação, foram
registrados 8.945 acidentes ofídicos, a maioria (93,8%) envolvendo serpentes
peçonhentas.
Outro estudo publicado recentemente na revista científica
on-line Plos One aponta que, em grande parte dos municípios brasileiros onde há
maior risco de picadas de cobra, o tempo para se obter o soro antiofídico pode
ser fatal. O artigo “Geographical accessibility to the supply of antiophidic sera
in Brazil: Timely access possibilities” traz informações sobre a
possibilidade de se chegar às unidades de saúde provedoras de soro antiofídico
a partir da relação entre distribuição populacional e tempo de deslocamento,
considerando que o tempo estimado ideal para a aplicação seria de até duas
horas após a picada. O levantamento cruzou dados populacionais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com informações do Sistema
Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox/Icict/Fiocruz) e Sinan,
além de usar sistemas como Google Maps e Google Street View, e até mesmo o
NASA’s SRTM – Shuttle Radar Topography Mission.
O Dr. Sharma atenta ainda que a carga global de envenenamento
por picada de cobra em animais era totalmente desconhecida antes do estudo
publicado em março. “Encontramos uma alta incidência (42-202/100.000/ano) e
mortalidade (79-100%) em vários tipos de animais, principalmente aves, bovinos
e caprinos. Como o Nepal é predominantemente agrícola, com 80% da sua população
que depende dessa atividade para subsistência, as perdas de seus animais
impacta e aumenta o fardo da picada em humanos”, assinala.
Em 2004, a Sociedade Americana de Medicina Tropical e
Higiene (ASTMH, na sigla em inglês) publicou o relatório “Impact of snake bites and determinants of fatal outcomes in
southeastern Nepal” no qual destacou que dados confiáveis sobre
morbidade e mortalidade por picada de cobra eram escassos devido à falta de
pesquisas comunitárias. Ainda segundo o documento, o sistema de notificação
existente de picada de cobra no Nepal depende de dados hospitalares que
provavelmente subestimam grosseiramente tanto a incidência quanto a
mortalidade, como mostrado em outros lugares.
Em muitos países onde as picadas de cobra são comuns, os
sistemas de saúde geralmente carecem de infraestrutura e recursos para coletar
dados estatísticos confiáveis sobre o problema. Avaliar o verdadeiro impacto é
ainda mais complicado pelo fato de que os casos relatados por clínicas e
hospitais aos ministérios da saúde muitas vezes representam apenas uma pequena
parte do problema real, já que muitas vítimas nunca chegam aos departamentos de
saúde. Como visto, os acidentes acometem principalmente pessoas que vivem na
área rural e em florestas de regiões relativamente mais pobres, muitas vezes
não sendo vistas pelos sistemas de Saúde e também pelas políticas públicas de
uma forma geral.
Baixa produção de antídotos
Um estudo de 2010 estimou que apenas 2% de pessoas
mordidas por cobras venenosas na África subsariana teve acesso a antídotos de
qualidade, e pouco mudou desde então. Em situações em que os dados sobre
envenenamentos por picada de cobra são escassos, é difícil determinar com
precisão as necessidades de soro antiofídico. Isso leva as autoridades
sanitárias nacionais a subestimar essas necessidades, com a consequente redução
da demanda por fabricantes de antídotos e, em alguns casos, sua retirada do
mercado.
A baixa demanda levou vários fabricantes a pararem a
produção e o preço de aumentou drasticamente nos últimos 20 anos, tornando o
tratamento inacessível para a maioria das pessoas que precisam. O aumento dos
preços reduziu ainda mais a demanda, a ponto de o tratamento ter diminuído
significativamente, ou até mesmo desaparecido, em algumas áreas. A introdução
de antídotos inadequados, não testados ou mesmo falsificados em alguns mercados
minou a confiança geral no tratamento. Muitos acreditam que um colapso no
fornecimento de antídotos na África e em alguns países asiáticos é iminente se
uma ação forte e decisiva não for tomada rapidamente.
“Sendo predominantemente uma doença dos pobres, o
enfrentamento dos acidentes ofídicos em âmbito global e regional deve se basear
em uma filosofia de integração, cooperação e solidariedade, longe da filosofia
lucrativa, nacionalista e individualista que, infelizmente, muitas vezes
prevalece na arena global. A cooperação entre países e regiões, incluindo
países do Sul Global, é de suma relevância”, assegura o Dr. Gutiérrez, ao citar
como exemplo a Rede de Laboratórios Públicos de Fabricação de Antivenenos
(RELAPA) que existe na América Latina, e o fomento de redes de pesquisa e a
integração de iniciativas comunitárias que estão sendo desenvolvidas em muitos
países. “Esforços coordenados regionais e globais devem ser promovidos e
fortalecidos, com a participação do maior número possível de interessados, a
fim de reduzir o sofrimento e o desespero humanos causados pelos acidentes
ofídicos”, aconselha.
Na opinião do Dr. Sharma, como a produção de soro
antiofídico é impulsionada pelo mercado e ele é limitado, uma vez que a picada
de cobra ocorre na população rural financeiramente desfavorecida, é provável
que as farmacêuticas não estejam suficientemente motivadas para investir em
P&D e na produção de antiofídicos. Para ele, o envolvimento de organizações
de desenvolvimento e filantrópicas provavelmente pode mudar o cenário e há
indicações nessa linha. Todas as partes interessadas devem se apresentar para
ser a voz dos sem voz, ou seja, as vítimas de picada de cobra.
Para o Dr. Bernarde, a falta de atenção dos governos se
reflete na falta de voz política dessas populações e da indústria farmacêutica
por priorizar, muitas vezes, doenças presentes em populações de países mais
ricos, que possibilita maior lucro de seus investimentos em pesquisas. “O
acidente ofídico não é um agravo à saúde que possa ser erradicado, pode apenas
ter diversas ações que podem contribuir para o seu controle e melhor desfecho
dos casos de envenenamento. Para mudar esse cenário é necessário criar ações de
conscientização nessas populações mais vulneráveis e implementar medidas que
possam facilitar o acesso das vítimas a um tratamento com qualidade capaz de
reverter o quadro clínico do envenenamento”, lembra.
Exemplo de política pública
Desde o século XX, a Costa Rica desenvolve esforços
sustentados na prevenção e controle de acidentes ofídicos. O Instituto
Clodomiro Picado, produz todos os antídotos necessários ao país. Além disso, o
país possui um sistema de saúde pública robusto que fornece soro e tratamento
médico gratuito a todas as pessoas que sofrem picadas de cobra. A experiência
adquirida nas últimas décadas está sendo projetada regional e globalmente para
apoiar outros países da América Latina e da África Subsaariana no enfrentamento
dessa DTN. O Dr. Gutiérrez explica que historicamente o país tem enfrentado o
problema por meio de uma estratégia nacional pública integrada e concertada que
envolve a produção local de soros e sua distribuição em todos os níveis do
sistema de saúde, fortalecimento do sistema público de saúde que tem cobertura
universal, capacitação de médicos e profissionais de enfermagem para o
diagnóstico e manejo dos acidentes e desenvolvimento de agenda ativa de
pesquisa científica e tecnológica. Também são realizados programas permanentes
de prevenção em grupos vulneráveis, incluindo comunidades indígenas, com o
envolvimento ativo de organizações locais. Mais recentemente, uma nova
legislação foi editada no país para oferecer suporte indenizatório e de
reabilitação aos trabalhadores rurais acometidos pelas sequelas dessa doença.
Assim, a Costa Rica construiu uma forte plataforma para estudar, prevenir e
tratar o envenenamento por picada de cobra.
Outro exemplo vem do Nepal. Segundo o Dr. Sharma, que
também é membro do Grupo de Trabalho em Acidentes Ofídicos da OMS e faz parte
da diretoria da Iniciativa Global em Acidentes Ofídicos, o governo sempre deu
prioridade à picada de cobra, sendo o primeiro país na região a fornecer soro
antiofídico gratuito às vítimas desde 1999. Além disso, a seção de
Epidemiologia e Controle de Doenças também realiza treinamento regular para
profissionais de saúde em manejo de picada de cobra. “Temos nossa própria
Diretriz Nacional baseada em evidências sobre manejo de picada de cobra, o que
geralmente é feito em colaboração com o escritório nacional da OMS. Porém, o
Nepal não produz soro antiofídico e depende da produção na Índia. Mas o mais
importante, nossos dados baseados em campo podem ajudar a desenvolver
estratégias intersetoriais sobre o envenenamento por picada de cobra, incluindo
interações no Nepal entre Ministérios da Saúde e População, Agricultura e
Desenvolvimento Pecuário, Florestas e Meio Ambiente e agências correspondentes
da ONU (por exemplo, OMS, UNICEF, FAO, PNUMA). As perdas de animais devido a
picada de cobra aumentam esse fardo em humanos e exigem ações intersetoriais da
One Health”, conclui.
Brasil como referência na produção de soros antiofídicos
Antes da criação do soro antiofídico no País por Vital
Brazil em 1901, a letalidade dos envenenamentos por serpentes era de 25%. Essa
taxa reduziu ao passar dos anos com a ampliação da produção e distribuição do
antiveneno no Brasil, tendo atualmente uma letalidade de aproximadamente 0,4%.
Para o Dr. Bernarde, mesmo tendo aspectos a serem melhorados, como a demanda de
soro ser devidamente atendida e eficientemente distribuída para estar
disponível de forma suficiente tanto espacialmente como sazonalmente, podemos
dizer que o Brasil é um exemplo em lidar com o ofidismo. Entretanto, para o
pesquisador, apesar de o Brasil ser considerado um exemplo, ainda há muitos
aspectos que podem e precisam ser melhorados. “Aparentemente a produção de soro
pode não ser suficiente para atender a demanda nacional, ou então, algo não
está sendo suficiente em relação a distribuição nas unidades hospitalares, uma
vez que é comum a falta de ampolas em determinadas localidades ao longo do
ano”, avalia. O pesquisador lembra ainda que muitas comunidades na Amazônia não
apresentam energia elétrica e condições assim ideais para manutenção dos soros,
que precisam estar devidamente refrigerados para serem utilizados. Nesses
casos, a produção de soro liofilizado poderia contornar o problema. “Um grupo
de trabalho do Ministério da Saúde poderia reavaliar esses aspectos que podem e
devem ser melhorados para que todo o processo, que vai desde a produção,
disponibilização e alcance da população, até a devida aplicação”, sugere.
O Instituto Butantan é o maior produtor e entrega 275 mil
frascos-ampola de antiveneno ao Ministério da Saúde anualmente para
distribuição aos estados e municípios. Agora, uma parceria entre o Instituto e
a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado da Universidade do
Estado do Amazonas (FMT/UEA) pretende aumentar o acesso de indígenas,
ribeirinhos, agricultores e outros moradores de áreas remotas da Amazônia ao
tratamento. Por meio da parceria, foram doados 800 frascos de soro antiveneno
de serpente para serem usados em unidades de baixa complexidade, destes,
antibotrópico (pentavalente) e 100 antibotrópico (pentavalente) e
antilaquético, indicados contra picadas das serpentes peçonhentas que mais
protagonizam acidentes do tipo na Região Amazônica. O local registra cinco
vezes mais acidentes do que no resto do País, porém os hospitais habilitados
para aplicação do soro antiofídico ficam geralmente em áreas urbanas, a
quilômetros de distância da zona rural e de floresta.
Desafio local e global
O Dr. Gutiérrez reforça que por ser uma “doença dos
pobres”, historicamente, e com poucas exceções notáveis, a picada de cobra não
recebeu a atenção que merece. Para ele, isso se reflete no baixo perfil desse
tema nas agendas globais de pesquisa, indústria farmacêutica internacional e
autoridades de saúde pública. “Felizmente, esta situação começou a mudar na
última década devido aos esforços conjuntos de muitas pessoas e organizações em
todo o mundo, que têm defendido maior atenção a esta doença. Como consequência
dessas iniciativas, a OMS incluiu o envenenamento ofídico em sua lista de DTN
em 2017, uma resolução sobre o assunto foi adotada pela Assembleia Mundial da
Saúde em 2018, instando os Estados-membros a desenvolver programas para reduzir
o seu impacto, e uma estratégia global para a prevenção e controle de acidentes
ofídicos foi emitida com a OMS em 2019. Assim, o cenário de negligência está se
transformando em um cenário de compromisso, embora ainda haja um longo caminho
para o cumprimento deste meta”, encerra o Dr. Gutiérrez.
O Dr. Sharma concorda. Para ele, se faz necessário esforços
combinados e coordenados de todas as partes interessadas, conforme descrito
pela OMS como quatro pilares para atingir esse objetivo: garantir que o
tratamento seguro e eficaz seja disponível e acessível a todos; capacitar
comunidades nacionais, locais e regionais para medidas proativas, assim como
melhorar a conscientização da comunidade; fortalecer os sistemas de saúde para
proporcionar melhores resultados, aqui ele destaca a formação inadequada dos
médicos ao manejo de picada de cobra, levando a uma força de trabalho ineficaz
para lidar com vítimas; e, por último, desenvolver forte coalizão global de
parceiros para construir a defesa, mobilizar recursos, coordenar ações e
garantir que a implementação do roteiro seja bem-sucedida.
O conhecimento adequado da magnitude do fardo e das
consequências que as picadas de cobras podem levar é essencial para a adoção de
medidas adequadas de prevenção, detecção e controle. Por fim, o Dr. Sharma
menciona a formulação de um conjunto adequado de intervenções para melhorar o
acesso aos cuidados de saúde (antiofídicos, ventiladores) e implementar
atividades de prevenção (calçado, análise ocupacional, promoção do transporte
de motos etc). “Embora tenha permanecido negligenciado no passado, com a
resolução da OMS e a publicação do roteiro para implementar estratégias para
prevenir, reduzir e controlar o fardo da picada de cobra, o tema levou a novos
horizontes e tenho muita esperança de que o objetivo para reduzir as mortes
relacionadas à picada de cobra para 50% seja alcançado até 2030”, finaliza o
Dr. Sharma.
O Dr. Bernarde pontua outro aspecto que considera de suma
importância: o notório despreparo de uma parte significativa dos profissionais
de Saúde em lidar com os casos de acidentes ofídicos, o que reflete
provavelmente a falta de disciplinas nos cursos de graduação específicas sobre
animais peçonhentos, bem como cursos de capacitação para os profissionais de
Saúde que estão na linha de frente nos pronto-socorros, que recebem pacientes
picados por serpentes. Para ele, os editais de fomento à pesquisa e as ações de
extensão na área de Saúde também deveriam contemplar os acidentes ofídicos, uma
vez que a OMS inclui estes na lista de doenças tropicais negligenciadas.
“Medidas simples podem ajudar muito. Um estudo publicado em 2017 na revista
Journal of Occupational Medicine and Toxicology com o título “Prevention of krait bites by sleeping above ground:
preliminary results from an observational pilot study” demonstrou que
a simples doação de camas para moradores em dois vilarejos com altos casos de
mordida por kraits (serpente que morde as pessoas principalmente quando estão
dormindo no chão) no distrito de Kilinochchi (Sri Lanka), proporcionou uma
redução dos casos de envenenamento por essas serpentes”, exemplifica.
As serpentes estão na natureza em vários habitats
naturais e antrópicos, desempenhando importante papel nos ecossistemas. Cabe ao
ser humano encontrar estratégias que permitam reduzir os riscos de acidentes
ofídicos e buscar condições adequadas que possibilitem o melhor desfecho
possível em caso de envenenamento. “Condições estas que envolvem desde o
conhecimento das condutas corretas de primeiros socorros, veículos que
possibilitem o rápido deslocamento até o atendimento hospitalar, que deve ter
as condições de infraestrutura suficiente, profissionais da saúde preparados
para lidar com o ofidismo e o antiveneno disponível”, arremata o Dr. Bernarde.
Fonte: https://www.sbmt.org.br/portal/envenenamento-por-picada-de-cobra-mais-mortal-das-dtn/?locale=pt-BR&utm_source=Mailee&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter+129+-+Envenenamento+por+picada+de+cobra%3A+mais+mortal+das+DTN&utm_term=&utm_content=Newsletter+129+-+Envenenamento+por+picada+de+cobra%3A+mais+mortal+das+DTN
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