Instituto Alana e CEPEDISA lançam
dossiê mostrando as implicações da má gestão da pandemia da Covid-19 na vida
dessa população e convidam diversas esferas da sociedade para debater soluções
e reverter os impactos negativos da violação de direitos
A pandemia começou em 2020 e, desde
então, tem impactado todo o mundo em várias escalas. Não foi diferente com as
crianças e os adolescentes, que tiveram seus direitos básicos violados,
especialmente pela gestão feita durante o período. Exemplo do descaso é que,
entre as normas criadas pelo governo federal durante a crise sanitária, apenas
uma pequena parcela traçava planos de enfrentamento exclusivos
para o público infantojuvenil. Isso é o que mostra o “Dossiê
Infâncias e Covid-19: os impactos da gestão da pandemia sobre crianças e
adolescentes”, elaborado pelo
Instituto Alana e o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário
(CEPEDISA).
O documento será lançado hoje durante o
VIII Seminário Internacional do Marco Legal da Primeira
Infância, promovido pela Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, na
Câmara dos Deputados. A pesquisa analisou 142 atos normativos, editados pelo
Executivo federal, que mencionaram termos ligados à infância e à juventude,
tais como “criança”, “adolescente”, “jovem” e “infantil”. Entre eles, poucos
continham políticas públicas voltadas a este público. Nesse contexto, caberia à
União a destinação orçamentária e a formulação de normas gerais entre todos os
entes da federação.
Essa ineficiência de ações está
revertida em números: dados da Fiocruz indicam que, até o dia 4 de dezembro de
2021, 1.422 crianças e adolescentes morreram em razão da Covid-19 - sendo 418
óbitos de crianças com até 1 ano; 208 de 1 a 5 anos e 796 de 6 a 19 anos -,
tornando o Brasil o segundo país com mais mortes nesta faixa etária. Além
disso, quase 20 mil crianças e adolescentes abaixo de 19 anos foram
hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), confirmados por
Covid-19.
Vale destacar que crianças em situação
de vulnerabilidade, cujas famílias se encontram em situação de pobreza,
especialmente crianças e adolescentes negros, residentes em comunidades
periféricas, quilombolas e indígenas - estas últimas, segundo estudo da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, têm o dobro de
risco de morrer de Covid-19 em relação às demais crianças - foram mais expostos
à doença, em compasso com as profundas desigualdades sociais e raciais do país.
Soma-se a isso o estresse gerado pela
falta de apoio durante a pandemia, além do aumento da pobreza e da fome, da
quebra da convivência familiar e social, da interrupção de atividades
presenciais e da perda de amigos e familiares que comprometeram a saúde mental
das crianças e dos adolescentes, contribuindo para o sofrimento psicológico e o
agravamento de questões de saúde já existentes. Um exemplo é que, segundo a
Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, uma a cada quatro crianças de até 3 anos
regrediram em algumas questões comportamentais, indicando o aumento do estresse
com o isolamento social.
As pesquisas que constam no dossiê são
de março de 2020 até setembro de 2021, com exceção do tópico ''Vacinação de
crianças e adolescentes'' que, em razão da atualidade do debate, foi atualizado
até fevereiro de 2022.
Vacinação
A vacinação de crianças e adolescentes
contra a Covid-19 é um poderoso meio para auxiliar na proteção e no
desenvolvimento integral deste público, que sofre tão intensamente os impactos
da má gestão da pandemia. A Fiocruz já alertou que as pessoas que ainda não
foram imunizadas são as mais suscetíveis às novas variantes. Mesmo assim, o
governo federal impediu a celeridade da campanha de vacinação e iniciou a
imunização de crianças menores de 12 anos quase um mês após o aval da Anvisa
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
O direito à vacinação infantil está
previsto em lei, pois a imunização integra o direito à saúde com absoluta
prioridade, conforme o artigo 227 da Constituição Federal. Ainda, o artigo 14
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a vacinação obrigatória em
“casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
“O governo federal deixou ações de
enfrentamento à pandemia voltadas para as crianças por último. Elas tiveram seu
direito à saúde negado, quando deveriam ser a prioridade. Ainda, elas possuem o
direito de ser protegidas contra uma doença que pode levar à morte e deixar
sequelas. A saúde individual e coletiva é uma condição para que elas tenham
acesso a outros direitos, como à educação e à convivência em sociedade”,
destaca Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana.
Educação
Estudo do Unicef (Fundo das Nações
Unidas para Infância) revela que o Brasil corre o risco de regredir duas décadas
no acesso de meninos e meninas à educação, já que pelo menos 5 milhões de
crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos estavam sem acesso à educação em
novembro de 2020. Destes, 40% tinham de 6 a 10 anos, faixa etária em que a
educação estava praticamente universalizada antes da pandemia.
Relatório da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico indica que o Brasil foi o país onde as
escolas ficaram fechadas por mais tempo durante a crise do coronavírus. Redução
do aprendizado, ampliação das desigualdades e aumento da evasão escolar são os
principais impactos da demora na retomada das atividades
presenciais. Atualmente, 28% dos jovens consideram não retomar os estudos,
segundo pesquisa "Juventudes e a Pandemia do Coronavírus", realizada
pelo Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE) e organizações parceiras.
Mais um impacto da falta de atividades
presenciais, especialmente nas escolas, importante local de proteção, é o
aumento da violência doméstica. No Brasil, as denúncias envolvendo violência
física, sexual e psicológica contra crianças e adolescentes caíram desde o
início da pandemia. Porém, a redução dos números não equivale à redução das
violências, mas se refere à subnotificação dos casos. Isso porque a rede de
proteção voltada aos jovens, como a própria escola, os canais de denúncia e as
possibilidades de identificação das violências foram reduzidas com o
isolamento.
Por estes motivos, o retorno presencial
às escolas é imprescindível. Inclusive, o Instituto Alana está monitorando as
decisões dos 26 estados e do Distrito Federal, além de diversas cidades do
país, sobre a retomada das aulas. Há uma tendência de adiamento da retomada,
com algumas previsões apenas para março e abril, o que viola os direitos
previstos pela Constituição, pelo ECA e pela própria Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
Orfandade e
pandemia
Levantamento do Imperial College mostra
que, no Brasil, de março de 2020 a outubro de 2021, ao menos 168,5 mil pessoas
de 0 a 17 anos perderam o pai, a mãe ou ambos por causa da Covid-19. No Senado,
o relatório final da CPI da pandemia recomendou a criação de uma política de
auxílio financeiro a crianças e adolescentes em situação de orfandade causada
pelo coronavírus. Porém, é necessário que uma legislação específica seja
aprovada.
“Precisamos dimensionar a situação
dessas crianças e adolescentes em situação de orfandade e promover medidas de
auxílio financeiro e apoio psicossocial para mitigar os efeitos deste trauma
tão precoce. Neste processo, é essencial fortalecer os órgãos que atuam para
garantir os direitos da criança e do adolescente, como os conselhos tutelares”,
afirma Ana Claudia, do Instituto Alana.
Crianças e
adolescentes negros
A má gestão da pandemia refletiu mais
duramente entre crianças e adolescentes negros, grupo que historicamente
enfrenta maiores desigualdades em diversos setores da sociedade. Segundo dados
do Sivep-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância da Gripe), até maio de
2021, 57% das crianças mortas pela Covid-19 no Brasil eram negras, grupo que
inclui pretos e pardos. Para efeito de comparação, as crianças brancas foram
21,5% do total, enquanto 16% não tiveram a raça definida.
Vale destacar que este grupo sofreu não
apenas nos aspectos ligados à infecção pelo vírus, mas também em cenários
socioeconômicos afetados direta ou indiretamente. Sabendo que a condição dos
pais e responsáveis reflete na vida desses jovens, o desemprego é um dos
principais problemas entre as famílias negras. No segundo trimestre de 2020, a
diferença da taxa de desemprego entre brancos e pretos foi a maior desde 2012,
segundo a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua),
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Outro impacto é na educação de meninas
negras. A ineficiência do ensino remoto para este grupo em razão da falta de
equipamentos adequados para a realização das atividades escolares é um dos
principais aspectos, sendo que um terço dessas jovens sequer realiza alguma
atividade educacional ou reserva tempo e espaço adequado para os estudos,
conforme mostra pesquisa realizada na cidade de São Paulo pelo Geledés
Instituto da Mulher Negra.
Tempo de tela e o
contato com a natureza
O dossiê também mostra que 76% dos
jovens assistem a mais vídeos na televisão do que antes da pandemia, enquanto
74% assistem a mais vídeos no YouTube e 45% ficam mais nas redes sociais do que
antes da pandemia. Os números alertam para riscos, como superexposição das
crianças, tratamento indevido de dados pessoais e exposição à publicidade infantil
e táticas de marketing predatório.
Por outro lado, as famílias que
conseguiram passar algum tempo ao ar livre notaram os benefícios para a saúde
física e mental. Quatro em dez relataram que o contato com a natureza permitiu
que as crianças passassem a pandemia com mais saúde e bem estar, e 91%
afirmaram que os pequenos ficaram mais felizes e ativos quando estão ao ar
livre, segundo a pesquisa “O papel da natureza para a saúde das crianças no
pós-pandemia”, idealizada pelo programa
Criança e Natureza, do Instituto Alana, em parceria com a Fundação Bernard Van
Leer e o WWF-Brasil. A Sociedade Brasileira de Pediatria também divulgou uma nota técnica que mostra a importância da natureza na recuperação da
saúde e bem estar das crianças no pós pandemia.
Ana Cláudia Cifali
- coordenadora jurídica do Instituto Alana. Mestre
em Cultura de Paz, Conflitos, Educação e Direitos Humanos pela Universidad de Granada
(UGR), Mestre e Doutora em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com período doutorado sanduíche no
Programa Delito y Sociedad da Universidad Nacional del Litoral (UNL). Membro do
Grupo de Trabalho Infâncias e Juventudes do Conselho Latino Americano de
Ciências Sociais (Clacso) e do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de
Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC).
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