Regina começou a namorar Sören aos 14 anos. Paula se apaixonou por Bebeto aos 15. Era um amor invulgar, cujas palavras se esforçam, mas quase sempre fracassam para descrever inteiramente. Se fosse possível, melhor seria o retrato dos muitos brilhos dos olhares, ou a impressão do calor das mãos sempre juntas. Aí sim, provavelmente, teríamos um testemunho fiel. Mas esse registro, poucos os poetas, raros os filósofos, tão proficientes no jogo intrincado dos vocábulos, conseguiram a proeza de traduzi-los. Mas eles existem, os poetas e os filósofos, para essa busca, para esse fim. Sem descanso.
Regina e Paula ficaram noivas de Sören e Bebeto,
geradas e consumidas por aquele fogo heraclitiano que move mundos e não se
extingue nunca. Move mundos, cria mundos, sem deixar nada no lugar. E, ainda amortecidas
pelo assombro e quanto mais essa certeza se lhes afigurava como uma
inevitabilidade, encheram-se de um medo insano: como sobreviveriam a essa
promessa de nunca acomodarem-se, sem a chance dos domingos calmos ou das
quartas-feiras com os amigos, mas apenas os olhares em brasa e os corpos
úmidos? Quem seria capaz de?
Afinal, entre o tremor/temor do sentimento, não
resistiram ao clamor dionisíaco e romperam o nó como um Alexandre exausto. “Nós
já éramos pessoas diferentes de quando nos apaixonamos”, disse Bebeto.
"Não há como viver o mesmo amor, não dá para pensar que é o mesmo amor
quando já somos outros", completou, o olhar desviando de seu interlocutor,
como quem mente ou finge. Ou se envergonha. Ou se arrepende.
O pensamento talvez tenha sido mais forte,
infiltrando-se nos momentos de torpor e de relaxamento: quando o fantasma do
espírito interfere nas proezas do corpo, não se pode mesmo se acomodar apenas
ao clamor do brilho do olhar. A intensidade vira incômodo e passamos a sonhar
com a calma dos dias cinzas. Pensar é para dentro, viver é para fora e há
imensas trincheiras entre esses dois campos minados. Bebeto confessou: “nossa
paixão era muito louca, não sobreviveríamos a ela”. Sören conjecturou: “não
posso enredar Regina em minha teia de infortúnios. Desse amor só me resta a
fuga”. E fugiu, para Berlim e para a Filosofia.
Paula e Bebeto eram amigos de Milton, que os
conheceu em uma praça da pequena cidade e se encantou vivamente com a alegria
que emanava deles, do um só que formavam. Depois, não se conformou com esse
desfecho de separação. No violão, vitimado por essa não aceitação da falta de
completude que todo amor deseja mas que lhe é tão impossível como o descanso de
Sísifo, Milton gerou de si uma canção, mas não conseguia colocar nela uma letra
- pois para isso teria de ver como quem apenas observa e ele estava mergulhado
também naquele sentimento - e procurou, numa noite chuvosa, ele também
com os olhos chuvosos, o amigo Caetano para terminar a letra, para completá-la.
Nasceu assim Paula e Bebeto, um hino ao amor concebido e não realizado e, ainda
assim, a melhor coisa que pode acontecer a um vivente. E na canção também ficou
registrada, tão bonita, tão sincera, uma confissão da impossibilidade da
palavra tradutora: "diga qual a palavra que nunca foi dita…”
Regina casou com um antigo pretendente e viveram
muitos anos juntos, até a morte deste. Sören escreveu centenas de textos
buscando entender o indivíduo e sua existência, buscando uma saída para essa
angústia fundadora que nos define e nos encerra. E, depois dele, nunca mais a
Filosofia foi a mesma.
“Existirmos: a que será que se destina?”, escreveu
Caetano, em outra canção, sobre outra forma de amor: a amizade, que a morte
interrompeu. Mas isso já é uma outra história.
Daniel
Medeiros - Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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