O impacto global do coronavírus tem servido para uma profícua reflexão sobre o modo de existência individual e coletivo dos humanos no Planeta. Uma profusão de textos acadêmicos e não acadêmicos tratando desse tema surgiram desde os primeiros dias da pandemia, apresentando enfoques e perspectivas diversos que se alteraram, não só de autor para autor, mas também conforme a doença se espalhava e seus efeitos traziam insegurança diante do aumento do número de mortes e do abalo na economia mundial e na saúde mental, com distanciamento social forçado. Podemos observar reflexões que vão do otimismo de uma possível mudança no sistema econômico global, ao pessimismo, com a leitura de que estaríamos diante do prenúncio de uma catástrofe maior: a ambiental.
O filósofo italiano Franco Berardi (Bifo), por
exemplo, afirma que “faz tempo que a economia mundial concluiu sua parábola
expansiva, mas não conseguimos aceitar a ideia da estagnação como um novo
regime a longo prazo. Agora o vírus semiótico está nos ajudando a fazer a
transição para a imobilidade”. Ele, então, conclui que entramos em uma
psicodeflação, uma desaceleração do modo de vida imposto pelo capitalismo
contemporâneo. Bruno Latour, por sua vez, fala de um ensaio geral da crise de saúde,
que deveria nos preparar para as mudanças climáticas.
De fato, a pandemia da Covid-19 impacta as relações
sociais e econômicas e a subjetividade por elas produzida – e nos coloca a
questionarmos a forma como lidamos com a natureza; o que faz necessário
pensarmos o vírus não apenas como um simples elemento natural, mas também como
um fenômeno sociotécnico, pois surge em Wuhan, na China, e na velocidade dos
voos internacionais ele se espalha pelo mundo; político, porque a resposta que
foi dada em cada país é muito diferente, inclusive com países, como o Brasil,
que não deram resposta nenhuma; econômico, já que chega pelas pessoas que podem
pagar pelos voos internacionais e vai se espalhar e atingir mais duramente as
camadas mais pobres, que precisam se expor aos riscos para continuar
trabalhando e não têm os mesmos meios para o tratamento médico.
Assim, o vírus nos coloca diante do espelho para
que possamos ver o limite, que talvez já ultrapassamos, da viabilidade do modo
de vida que construímos. Modo que se estrutura a partir de duas grandes
fraturas: uma que separa humanos e não humanos e outra que separa os humanos
dos “menos humanos”.
Os humanos se separam dos não humanos de duas
maneiras: por ruptura com os objetos técnicos, e com os objetos orgânicos não
humanos. Isso em razão da racionalidade tecnocientífica instrumental estar
entrelaçada à racionalidade econômica, o que resulta em uma espécie de lógica
operacional que transforma tudo em objeto suscetível de manipulação,
recombinação e reprogramação. Tudo se passa como se o planeta inteiro fosse um
recurso para o capital e a tecnociência.
Diante disso, alguns teóricos colocam de uma
maneira interessante que, hoje, nós batalhamos contra um vírus, quando, em termos
de natureza, talvez, nós sejamos o pior vírus que existe. Onde o humano chega,
ele destrói quase toda a vida existente.
A outra ruptura se dá entre aqueles que a ideia de
humanidade moderna constituiu como humanos e aqueles menos humanos. Trata-se de
uma ideia colonial que não admite outras humanidades senão essa humanidade
tecnológica capitalista, que impõe como única forma possível de ser no mundo a
forma individual de consumidor no mercado global.
O vírus semiótico, diferente do que afirma Bifo,
não parece estar freando a aceleração tecnológica das subjetividades
individuais, mas nos oferece a oportunidade, mais uma vez, de mudarmos nossa
relação entre humano e não humanos e entre as diferentes humanidades.
Precisamos, como ensina o pensador indígena Ailton Krenak, pensar na Terra “não
só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na
dimensão transcendente o que dá sentido à nossa existência”. Precisamos
construir outros futuros.
Anderson Marcos dos
Santos - doutor em Sociologia, mestre em Direito, é coordenador adjunto e
professor do mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP).
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