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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Computadores e serviços ecossistêmicos



Olhe com atenção para o aparelho que você tem em frente ao seu rosto. Seja ele um notebook ou um celular, ele possui diversas capacidades, extremamente valorizadas por você. Este equipamento permite que você veja fotos, se conecte com a rede mundial de computadores, assista a centenas de filmes, que você ouça suas músicas preferidas, receba notícias, mantenha contato com pessoas distantes. Por ele, você se alegra, se inspira, se manifesta, se entristece, se apaixona. Certamente, não é apenas uma máquina. É algo mais, ao qual você se apega fortemente.

Agora, imagine que você desmonte, com zelo, minúcia e cuidado, o seu equipamento, peça por peça. Você pega todos os componentes – do parafuso mais ordinário ao processador mais complexo – e coloca cada uma dessas peças em uma caixa. Agora, você olha para a caixa com atenção. Você não tem mais acesso à internet, não escuta músicas, não recebe a ligação de pessoas queridas. Apesar de todas as peças estarem ali, definitivamente, você não tem um computador ou smartphone.

O som, a imagem, a luz, o processamento, a conectividade e diversas outras funções executadas são propriedades emergentes de seu sistema computacional. Propriedades emergentes surgem como resultado da interação de diferentes partes de sistemas complexos. Elas nos mostram a importância da interação entre os diferentes componentes do sistema, pois o resultado dessa interação é maior que a simples soma das partes.

A emergência de propriedades inesperadas é uma das principais características dos sistemas complexos. Uma pessoa que vê um computador pela primeira vez é simplesmente incapaz de compreender todas as possibilidades do aparelho olhando apenas para a aparência das peças. No entanto, o computador terá todas as suas funcionalidades disponíveis, mesmo que você não saiba quais são essas possibilidades.

Agora, imaginemos que, por alguma razão, você resolva eliminar algumas peças de seu computador. Tirando alguns dos parafusos que seguram a carenagem, pouca coisa acontece. Dependendo da quantidade de peças que você remove e do que você retira, ele já apresenta problemas. Assim como computadores, os ecossistemas também dependem da estrutura, função e composição de seus componentes para produzirem suas propriedades emergentes.

Diversos estudos têm se ocupado em mensurar a escala de grandeza e a valorar serviços ecossistêmicos tais como a polinização, a produção de solo, a infiltração e evaporação de água, o controle de pragas. No entanto, diversas pessoas que eventualmente leem a palavra “polinização” não percebem a real dimensão dessa propriedade dos ecossistemas. A polinização envolve a atividade e o complexo ajuste entre diversas espécies de aves, morcegos, insetos e plantas. Segundo um relatório produzido pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviço Ecossistêmicos, apenas a atuação dos polinizadores geraram para a agricultura nacional mais de R$ 40 bilhões em 2018.

Agora vamos imaginar que fôssemos capazes de separar todos os elementos dos ecossistemas, um a um. Esses elementos desassociados já não serão capazes de realizar nenhum serviço ecossistêmico. Mesmo coleções de organismos vivos, como observamos em zoológicos ou orquidários, por exemplo, são praticamente incapazes de exercer qualquer serviço ecossistêmico. O ecossistema vai produzir propriedades emergentes quando suas peças interagirem na captura, transformação, armazenamento e transmissão de energia em um sistema amplamente interconectado.

Olhe novamente para o seu computador. Imagine que ele perdeu 10% de todas as peças. O que você espera da capacidade desse equipamento continuar “trabalhando”? Não muito, acredito eu. No entanto, é exatamente essa porcentagem de peças que a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos estima estar ameaçada de desaparecimento no planeta. Se existe na Terra algo em torno de 10 milhões de espécies, estamos falando no desaparecimento de 10% das plantas e animais do planeta. Não se sabe quais serão os efeitos da perda desses componentes nas propriedades emergentes dos ecossistemas naturais e na manutenção da qualidade da vida humana e não-humana em futuro próximo.

No entanto, nenhuma analogia é perfeita. No caso de um computador com problemas, podemos adquirir peças novas no mercado. Embora possamos atuar, através de técnicas de manejo, no funcionamento dos ecossistemas, não podemos simplesmente ir no mercado e comprar um predador topo de cadeia. Tal situação é ainda mais alarmante quando pensamos do ponto de vista de falência de sistemas agrícolas. É estimado que apenas a polinização responda por US$ 577 bilhões por ano na produção agrícola mundial, mas cerca de 16% dos animais polinizadores estão ameaçados de desaparecimento.

Alguém pode perguntar: “Mas porque o colapso dos ecossistemas ainda não aconteceu?”. Essa é uma boa pergunta e envolve também propriedades emergentes. A regeneração de áreas degradadas, a depuração da poluição em rios e mares, a migração, a colonização e até mesmo a adaptação são propriedades emergentes dos ecossistemas e, em diferentes escalas, são responsáveis por evitarem que ocorra o imediato colapso dos ecossistemas naturais.

O fato de um computador incompleto ligar quando colocado na tomada não significa que ele vá funcionar a contento. Da mesma forma, é comum ouvirmos pessoas equivocadas dizerem que os ecossistemas naturais com os quais têm contato estão funcionando pela presença de alguns elementos naturais. Você pode chegar em um ambiente e ver plantas e animais e achar que a natureza está em “equilíbrio”, quando os componentes que você enxerga são espécies invasoras em um ambiente degradado ou apenas os últimos indivíduos de uma população sofrendo constante declínio populacional em um ecossistema esquálido.

Humanos são conhecidos pela capacidade de adaptação a diferentes condições. Vejamos como iremos nos adaptar à perda das propriedades emergentes sobre as quais construímos nossos ecossistemas artificiais.




Reuber Brandão - doutor em Ecologia, professor associado da Universidade de Brasília e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

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