De todas as forças que se apropriam de um ser
humano, a obsessão com o real parece ser a mais contraditória e angustiante.
Sabina de Kundera (a pintora de A Insustentável Leveza do Ser) descobre
esse princípio por meio do choque: uma pintura mais real que a realidade
retratada pode ser partida por um fio de tinta e, subitamente, inaugura a
impressão de que há, para além da tapeçaria do real, algo mais. Atrás da
fissura há um mundo, pleno e contraditoriamente vazio, e tudo o mais não passa
de um amontoado de ilusões e idealizações, das quais por vezes dependemos para
sobreviver.
Assim surge a decisão do governo austríaco que
determina o fechamento de sete mesquitas e a possível expulsão de quarenta imãs
do país. Um olhar apressado pode fabricar um retrato de traços realistas e
estabelecer rapidamente dois lados para o dilema. Um deles é o de um governo
formado pela centro-direita e direita austríacas. A coligação foi eleita no
período de maior resistência à imigração e prometeu tomar medidas de redução de
fluxos de imigrantes para o país.
Do outro lado, vemos os adeptos do islamismo
divididos. As mesquitas diretamente afetadas estão vinculadas a comunidades
turcas de inclinação salafista (movimento sunita que agrega aos ensinamentos do
Alcorão as observações de gerações subsequentes a Maomé). Ao mesmo tempo,
grupos islâmicos parecem defender a decisão do governo austríaco, rejeitando
solidariedade aos grupos afetados.
Não é possível negar o mal-estar.
No centro do problema, uma notícia circula há
algumas semanas pelos periódicos austríacos, causando razoável polêmica:
noticiou-se a encenação, por crianças turcas, da batalha de Gallipoli em
mesquita salafista de Viena. Gallipoli foi uma das poucas vitórias decisivas da
Turquia ao longo da 1ª Guerra Mundial. Atacados por britânicos e franceses, os
nacionalistas turcos defenderam Constantinopla, garantindo a segurança da
cidade. Durante a encenação, as crianças representavam soldados mortos em
combate; caídos, eram envolvidos pela bandeira turca, em uma representação de
evidente orgulho nacional.
Na ocasião, Sebastian Kurz se pronunciou ferozmente
contra o evento, alegando sua natureza radical e seu interesse político. A
microfísica das relações em choque começa a se revelar, mas não se encerra no
evento em si. A mesquita em questão é local de congregação de um grupo
conhecido pelo nome de Lobos Cinzentos. O grupo, fundado no final dos anos 60
na Turquia, tem claros interesses nacionalistas, sendo classificado como
organização de extrema direita, xenofóbica e discriminatória ao extremo. Após
os anos 90, os Lobos Cinzentos iniciaram uma campanha em nome dos interesses
políticos de uma suposta Pan-Turquia, avançando para países estrangeiros com
comunidades turcas islâmico-salafistas representativas. Um dos alvos foi
evidentemente a Áustria.
A consequência direta foi, portanto, a medida
radical tomada pelo governo austríaco, já inclinado (em virtude de seu próprio
nacionalismo excessivo e atitudes discriminatórias) a desencorajar as correntes
de imigração, notadamente aquelas taxadas de ‘eixos de formação terrorista’. No
meio disso, os grupos muçulmanos não diretamente afetados não parecem
compreender o precedente que começa a se formar. Propostas radicais por parte
do governo poderão surgir no futuro, tendo alcance ainda mais amplo.
Não se pode esquecer que a legislação de 1998,
aprovada com participação dos partidos componentes do atual governo, já impunha
limitações veladas a práticas religiosas, classificando grupos religiosos em
“sociedades”, “comunidades” e “seitas”, atribuindo-lhes diferentes graus de
privilégios jurídicos (sociedades recebem suporte financeiro do governo
austríaco, comunidades podem ter propriedade e seitas só existem juridicamente
como associações comuns). A realidade se desnuda e se parte: mesmo que minha
regulamentação garanta o seu direito, ela ataca suas prerrogativas limitando
seus meios de ação. Sem que você perceba, eu o censuro e eu o discrimino.
A legislação de 2015, que afeta diretamente grupos
islâmicos, agrava o problema, tanto por criar mais limitações quanto por
torná-las mais específicas.
Com a ação, uma política sutil de restrição de
ingresso de culturas e religiões estrangeiras começa a se formar. Os grupos
islâmicos que não se sentem afetados pela decisão permitem um aumento das
políticas de repressão de um governo que avança para práticas autoritárias
(respeitando os limites legais, mas sorrateiramente predando direitos). Para o
governo austríaco, contudo, não agir representa um risco: os Lobos Cinzentos
jogam com os argumentos de liberdade de expressão e prática religiosa para
disfarçar posicionamentos políticos agressivos. O próprio governo Erdogan, que
tem mostrado extremo autoritarismo na Turquia, reprovou a ação como demagógica
e populista, e como uma agressão aos direitos de seus compatriotas turcos. Esse
é o mesmo Erdogan responsável por excessos repressivos, ações irregulares
contra cidadãos, restrição de direitos, islamização antidemocrática da Turquia,
etc.
A obsessão com o real trouxe as massas ao momento
presente. Tão obstinadas estão com suas próprias prerrogativas que idealizam o
real e não percebem a pressão de grupos radicais para a formação de ordens
autoritárias, violentas e antidemocráticas. Nesse caso, dois extremos lutam
enquanto direitos são ignorados. Quem perde é a comunidade que anseia pela
liberdade de culto com genuína fé e legítimas idiossincrasias. E, infelizmente,
o cenário se repete, independentemente de países, idiomas e culturas.
Rafael Zanlorenzi - doutor em Direito e professor do curso de Direito da
Universidade Positivo (UP).
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