|
A pesquisa envolveu um grupo de cem mulheres entre 18 e 55 anos recrutadas na região de Ribeirão Preto foto: Débora Grossi/USP |
Estudo feito na USP sugere que
a dor pode piorar com o tempo, à medida que os músculos do sistema
craniocervical ficam mais fatigados; para os autores, tratamento deve aliar
medicação e fisioterapia, visando dessensibilizar e fortalecer a musculatura da
região
Mulheres com enxaqueca e dor
cervical crônica têm alterações funcionais nos músculos do pescoço. Em média,
aguentam 50% menos tempo nos testes de força, resistência e pressão nessa
região do que as pacientes que não apresentam essas condições.
Além disso, nos testes feitos
na Universidade de São Paulo (USP), observou-se como a musculatura
craniocervical dessas pacientes fica mais fatigada do que a de quem não têm
enxaqueca. São acometidos principalmente o esplênio e o escaleno anterior –
músculos superficiais do pescoço que ajudam na flexão lateral e na rotação.
Isso sugere que os tratamentos
propostos para quem tem enxaqueca precisam levar em consideração a
dessensibilização da região cervical, aliando medicação e fisioterapia para que
as pacientes tenham mais chances de obter bons resultados no tratamento e
manejo da dor.
Os dados foram publicados no European
Journal of Pain.
A pesquisa foi apoiada pela
FAPESP (projetos 18/21687-8 e 15/18031-5) e
liderada pela professora Débora Bevilaqua Grossi,
responsável pelo Ambulatório de Fisioterapia em Cefaleia e Disfunção
Temporomandibular (DTM) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (FMRP-USP).
“Os pacientes com enxaqueca têm
12 vezes mais dor no pescoço do que uma pessoa sem dores de cabeça. Mesmo que o
indivíduo não se queixe, é importante que seja avaliado do ponto de vista do
sistema craniocervical para a investigação dos sintomas. Importante questionar
se tem dor no pescoço, na face, para mastigar, no ouvido ou no ombro. Essas
dores musculoesqueléticas periféricas são importantes de serem questionadas”,
explica Grossi à Agência FAPESP.
Segundo a pesquisadora, quem
tem enxaqueca não só tem dor no pescoço, mas também tem fraqueza. “E para
tentar reverter esse quadro e ganhar força, amplitude de movimento, nós
mostramos na pesquisa que é preciso aliar o medicamento à fisioterapia para tirar
essa sobrecarga da musculatura. Aí, é mais rápido o resultado do tratamento”,
afirma a neurologista Fabíola Dach, coautora do artigo e
responsável pelos ambulatórios de Cefaleia, Dor Neuropática e Neurologia Geral
do HCFMRP-USP.
Dor
crônica
Segundo a Organização Mundial
de Saúde (OMS), a estimativa é que mais da metade da população apresente algum
tipo de cefaleia, pelo menos em alguma fase da vida. O paciente é considerado
crônico quando tem mais de 15 dias de dor durante o mês.
Ao todo, são mais de 250 tipos
de dor de cabeça, segundo a Sociedade Internacional de Cefaleia. Uma delas é a
enxaqueca, uma das doenças mais incapacitantes do mundo, que compromete a
qualidade de vida dos pacientes, inclusive no ambiente profissional.
“Mais de 70% dos pacientes com
enxaqueca apresentam dor cervical. E essa dor está, geralmente, relacionada à
redução da resposta ao tratamento com medicamentos. Quem tem dor no pescoço
apresenta mais chance de se tornar um paciente crônico e com implicações na
resposta à medicação”, destaca Grossi.
Caso não seja tratada
corretamente, a musculatura da cervical e de toda essa região da face pode
levar ao aumento dos níveis de sensibilização do paciente e, com isso, acabar
cronificando a dor, isto é, deixando as crises mais frequentes e com maior
intensidade. Além de repercussões musculoesqueléticas, quem tem enxaqueca
também pode apresentar comprometimento do equilíbrio e maior risco de quedas
com o passar dos anos.
“Nós temos a sorte de
trabalharmos juntos. Normalmente, fisioterapeutas e médicos trabalham sozinhos,
mas, na nossa linha de pesquisa, nós mostramos os resultados desse trabalho em
conjunto há muitos anos”, comemora Dach.
No site do grupo de pesquisa sobre DTM e cefaleia
estão disponíveis gratuitamente diversos vídeos e materiais informativos, tanto
para os profissionais quanto para os próprios pacientes.
Como foram
os testes
A pesquisa envolveu um grupo de
cem mulheres entre 18 e 55 anos recrutadas na região de Ribeirão Preto,
interior de São Paulo. Diversos testes foram conduzidos – quando as pacientes
estavam sem dor – visando detectar as disfunções musculoesqueléticas.
As voluntárias foram separadas
em quatro grupos: o primeiro, para controle, incluía mulheres sem enxaqueca nem
dor no pescoço; no segundo grupo estavam as pacientes que tinham apenas dor no
pescoço; no terceiro, mulheres com enxaqueca e dor no pescoço; e, por fim, no quarto
grupo, as pacientes que tinham enxaqueca e também a possibilidade de ter
alodinia – uma maior sensibilidade no rosto e no couro cabeludo, por exemplo,
ao pentear ou amarrar os cabelos.
“Nós medimos em segundos a
resistência desses músculos e comparamos quem tinha enxaqueca com quem não
tinha. Os dados revelam que, em pacientes com enxaqueca, esses músculos
cervicais estão mais fatigados e com menor resistência à contração do que em um
indivíduo sem enxaqueca. Percebemos que era preciso treinar essa musculatura do
pescoço. Normalmente as pessoas alongam esses músculos, mas se esquecem de
fortalecê-los”, ressalta Grossi.
Primeiro, para medir o limiar
de dor à pressão, foi utilizado um dinamômetro (medidor de pressão) e um disco
metálico. As pacientes ficavam sentadas e recebiam uma leve pressão em alguns
locais na região do trapézio superior e da escápula, entre outros músculos.
Quando percebiam a dor, apertavam o gatilho.
|
Um aparelho de eletromiografia foi usado para avaliar a resistência muscular de voluntárias com e sem enxqueca foto: Débora Grossi/USP |
Depois, no teste de força
muscular, as voluntárias ficavam deitadas e eram estabilizadas com cintas não
elásticas, para evitar compensações. Era solicitada, então, uma contração
máxima do pescoço, também medida pelo dinamômetro. No fim dos testes, os
pesquisadores perguntavam se elas tinham sentido dor no pescoço ou de cabeça
durante os exames, e qual tinha sido a intensidade da dor.
Já os testes de resistência
muscular, flexão e extensão do pescoço foram feitos com as pacientes deitadas
de bruços para avaliar a resistência dos músculos extensores, bem como deitadas
com a barriga para cima, para avaliar a resistência dos músculos flexores.
Também foram posicionadas tiras não elásticas para estabilizar o tronco das
participantes. Quando o examinador retirava o suporte, o teste começava e a
paciente era orientada a manter a cabeça na mesma posição em flexão ou
extensão. Quando elas não conseguiam mais sustentar a posição sem o apoio, por
dor ou cansaço, o teste era finalizado.
Por fim, o teste de resistência
dos músculos flexores do pescoço também foi realizado com as participantes
deitadas, mas preservando o alinhamento da coluna vertebral e com as pernas
estendidas ou ligeiramente flexionadas para permitir o relaxamento dos músculos
abdominais. Nesse teste, o examinador colocava a mão atrás do osso occipital,
que fica bem na junção da cabeça com o pescoço. Ele é o único osso craniano que
se articula com a coluna vertebral. As pacientes eram orientadas a flexionar o
pescoço e, em seguida, a elevar de forma suave a cabeça. O teste terminava
quando elas eram incapazes de manter essa posição sem apoio, por cansaço ou
dor.
Em média, as pacientes com
enxaqueca e dor na região do pescoço só conseguiram aguentar cerca de 34
segundos, metade do tempo que as participantes sem essas condições foram
capazes de suportar.
Em um dos grupos, as pacientes
que sentiram dor de cabeça e dor de pescoço durante o teste não conseguiram
suportar nem 30 segundos, em média.
“Nós também avaliamos a
incapacidade cervical e realizamos uma análise eletromiográfica dos músculos
cervicais em conjunto com a análise da força, da resistência e do limiar de dor
e sensibilidade mapeando a presença das disfunções cervicais. As evidências só
reforçaram a nossa hipótese de que o pescoço parece ser um fator também de
cronificação da enxaqueca”, ressalta Grossi.
|
No teste de força muscular, as mulheres ficavam deitadas e eram estabilizadas com cintas não elásticas, para evitar compensações. Era solicitada, então, uma contração máxima d o pescoço, também medida pelo dinamômetro foto: Débora Grossi/USP |
Destaques
Uma das principais
contribuições do grupo de pesquisa nos últimos anos, de acordo com Grossi, foi
compreender melhor as repercussões dessas dores de cabeça. Independentemente do
relato da dor no pescoço, esses pacientes podem apresentar disfunção cervical
com diminuição da amplitude de movimento, fraqueza, falta de coordenação
muscular e maior sensibilização.
Ainda não está claro, no
entanto, se a dor no pescoço faz parte do quadro prodrômico da enxaqueca (ou
seja, anterior à crise), se é um dos sintomas e, portanto, parte de um ataque
ou, ainda, se atua como um fator perpetuador da doença. Por isso, novos estudos
são necessários para entender melhor sua associação com a dor de cabeça.
Segundo a pesquisadora, as
mulheres acabam se queixando mais, buscando mais tratamento, mas os homens
também sofrem com a enxaqueca da mesma forma. E um dos aspectos importantes
dessa dor é a sensibilização do pescoço e da face.
“Enxaqueca é mais do que dor de
cabeça. Muitas vezes, a pessoa não consegue distinguir um ataque de dor no
pescoço de uma crise de cefaleia porque as coisas caminham juntas. Nem todos os
pacientes com enxaqueca apresentam dor no pescoço, mas é importante destacar
que podem existir subgrupos de pacientes com maior acometimento cervical ou,
por exemplo, do controle postural”, explica Grossi.
“Os nossos dados apontam que
pacientes com enxaqueca crônica e com aura têm maior chance de queda e dez
vezes mais chances de ter tontura. É uma descoberta de grande impacto, porque
poucos acreditavam nessa interação, e pode ajudar muito na abordagem clínica
desses pacientes, prevenindo repercussões funcionais indesejáveis”, afirma
Grossi.
Os dados recentes do grupo
também trazem informações importantes sobre outra dúvida que vem gerando debate
entre os cientistas da área: existe ou não outro tipo de enxaqueca, cuja maior
queixa é a tontura? Seria outra doença?
“Existem subgrupos de
pacientes. Há aqueles que têm maior repercussão musculoesquelética e aqueles
com maior repercussão funcional no controle postural, que relatam muita
tontura, vertigem ou desorientação espacial. Nossos dados reforçam a hipótese
de que se trata da própria enxaqueca e é preciso tratar a dor de cabeça”,
enfatiza Grossi.
Tratamento
“Muitas vezes, a principal
queixa da pessoa nem é mais a dor de cabeça. Pode ser a tontura, a vertigem, ou
a dor dos músculos da face e do pescoço impactando muito na sua qualidade de
vida”, ressalta Grossi.
Embora muitos pacientes que têm
enxaqueca evitem praticar exercícios e até se movimentar, dependendo do
desenvolvimento da doença, a pesquisadora recomenda que a atividade física e
exercícios específicos sejam aos poucos incorporados à rotina com orientação
especializada.
“Eu preciso saber como tratar
esse paciente, como ajudá-lo e, no caso do exercício, é preciso incentivar que
ele pratique alguma atividade, sempre fora das crises, e que ele seja o mais
ativo possível, dentro das suas condições. Você não vai começar carregando o
maior peso do crossfit. Talvez comece apenas caminhando e, então, vamos
progredindo. Talvez goste de dançar, o que seria muito bom para trabalhar e
desafiar um pouco o seu sistema vestibular e ainda se divertir”, comenta a
pesquisadora.
O artigo Cervical
muscle parameters and allodynia in migraine and cervical pain – A controlled
study pode ser lido em: onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ejp.2200.
Cristiane Paião
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/mulheres-com-enxaqueca-e-dor-cervical-cronica-tem-quase-50-menos-forca-e-resistencia-no-pescoco/51990