O Brasil terminou 2023 festejando a promulgação da
Emenda Constitucional nº 132, a Reforma Tributária, há décadas reclamada para
dar ao país melhores condições de desenvolvimento.
A Reforma Tributária de fato trouxe avanços, dentre
eles isenções e reduções de até 100% nas alíquotas dos tributos sobre consumo.
Outros, como serviços de educação, saúde, medicamentos, e cuidados básicos à
saúde menstrual serão agora beneficiados com redução de até 60% das alíquotas
dos tributos incidentes sobre o consumo. Também foram objetos de redução de 30%
das alíquotas dos tributos aqueles relativos à prestação de serviços de
profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística,
submetidos à fiscalização pelos respectivos conselhos profissionais e, segundo
o disposto na Lei Complementar, a ser enviada pelo presidente da República em
até 150 dias da data da promulgação da EC nª 132, que ocorreu em 20 de dezembro
de 2023.
O ponto mais relevante do texto promulgado foi, sem
dúvida, a eliminação de 26 legislações que vigoravam no Sistema Tributário
Nacional, até então um verdadeiro “manicômio tributário”, tamanho o número de
leis no ordenamento jurídico incidentes sobre a tributação e consumo, agora
substituídas por legislação única, vigente em todo o território nacional.
A reforma recebeu aplausos entusiasmados, porém é
preciso alertar que ainda há muitos mecanismos a serem estudados, definidos e
normatizados em Lei Complementar para dar efetividade prática à Emenda
Constitucional. Essa questão específica é suficiente para frear a euforia
provocada pela Reforma Tributária, uma espécie de unanimidade nacional
carregada de ufanismo e otimismo.
É muito cedo para comemorar. Haverá muitos
percalços em 2024, frutos de vários pontos preocupantes deixados para serem
tratados na legislação infraconstitucional. Um deles é a alíquota-padrão da
tributação sobre o consumo, cuja definição deverá se dar até junho de 2024. Em
razão das exceções abrigadas pelas reduções de 100%, 60% e 30% de
alíquota-padrão, e considerando que nenhum entre federativo (União, estados e
municípios) devolve arrecadação, é possível prever que teremos essa
alíquota-padrão fixada em 26,5%, 27,5% ou até mesmo 28%. Isso significa que,
para os não apadrinhados pela reforma, o Brasil terá a segunda – ou talvez a
primeira – maior carga tributária sobre consumo no planeta, muito acima dos 37
países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). A título de exemplo, a tributação sobre consumo no México é de 16%, na
Nova Zelândia, de 15%; na Alemanha, de 19%; na França, de 20%; no Japão e na
Coréia do Sul, de 10%; no Canadá, de 12%, e nos Estados Unidos, em média, de
7,4%.
O impacto da alíquota-padrão é enorme. Podemos
estimar que o consumo no Brasil continuará contribuindo com 15% do Produto
Interno Bruto (PIB), 41,5% a mais do que a média dos países da OCDE, de 10,6%
do PIB.
Outro problema será a transição de um sistema para outro, lenta e demasiado
longa. Começará somente em 2026, último ano do mandato dos atuais mandatários
(presidente da República, governadores e parlamentares do Congresso Nacional).
Em nome da previsibilidade, criou-se um hiato no qual nada mudará para os
atuais governantes. A transição será finalizada em 2033, ou seja, atravessará
praticamente dois mandatos, uma eternidade em se tratando de Brasil.
Neste país, o risco é grande quando os prazos são tão longos. E temos exemplos
na história. A Constituição Federal de 1988 admitiu, de forma explícita, a
concessão de benefícios fiscais e/ou renúncias apenas para reduzir
desigualdades regionais e sociais (artigos 3º, 43, 151, 155 e 165, parágrafos
6º e 7º) e o resultado disso, ao longo dos últimos 35 anos, foi o total
desrespeito ao texto constitucional. De forma nada transparente e ao seu bel prazer,
presidentes da República vêm concedendo renúncias fiscais em valores que somam
mais de 4,5% do PIB, ou cerca de R$ 500 bilhões/ano. Já os governadores
concedem benesses que totalizam de R$ 60 a R$ 80 bilhões/ano.
Esse abuso jamais teve fim. Pelo contrário. Em agosto de 2017, para garantir
proteção aos governantes que descumpriram o texto constitucional contra
eventuais ações de responsabilidade, foi sancionada a Lei Complementar 160, que
legitimou retroativamente o concedido de forma ilegítima e ainda expandiu por
mais anos os benefícios fiscais concedidos ilegitimamente. A Farra foi grande.
De volta à EC 162, também merece observação que alguns pontos terão transição
concluída após quase cinco décadas – 49 anos, para ser exato, de 2029 a 2077 -,
após o fim do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do
Imposto Sobre Serviços (ISS).
Teremos ainda um novo imposto federal sobre bens e produtos nocivos à saúde e
ao meio ambiente a ser definido em lei complementar.
O artigo 149-A da Emenda Constitucional prevê que os municípios e o Distrito
Federal poderão instituir contribuição para custeio, para expansão e melhoria
do serviço de iluminação pública e segurança dos logradouros públicos.
Também deve ser considerado que a instituição de nova tributação sobre consumo
é mais abrangente e alcança itens hoje isentos. Haverá tributação sobre
serviços importados, inclusive direitos.
A EC modifica, ainda, o critério da partilha da parcela do recém-criado Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS) destinada aos municípios, priorizando com 80% de
25% - ou seja, 20% - em função da população local. Como tudo terá transição
lenta, os prefeitos eleitos em 2024 não terão com o que se preocupar.
Pouco se falou também que vários fundos foram criados com recursos da União
para repasse aos estados ou para gerenciamento compartilhado com esse ente
federativo. Entre eles estão o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação da
Economia do Amazonas, o Fundo de Desenvolvimento Regional – visando reduzir
desigualdades regionais e sociais; e o Fundo de Compensação de Benefícios
Fiscais ou Financeiros-Fiscais para compensar, entre 1/1/2029 e 31/12/2032,
pessoas físicas ou jurídicas beneficiárias de incentivos concedidos por prazo
certo e sob condições.
Obviamente, fundos pressupõem aportes de recursos com fontes definidas e formas
de correções de valores. Cabe a pergunta: de onde virão os recursos se hoje a
União não dispõe de montante para investimentos, se não haverá aumento da carga
tributária nem crescimento do PIB, e se não foi incluída na EC 132 uma linha
sequer sobre redução dos custos da máquina pública, dos desperdícios e da
corrupção?
É inevitável que tenhamos aumento da carga tributária e também crescimento do
endividamento que financia os déficits nominais anuais. Até quando?
Necessário lembrar ainda que, simultaneamente à tramitação da PEC sobre
tributação e consumo, o Governo Federal cuidou de buscar novas fontes de
arrecadação por meio de maior tributação do Imposto de Renda sobre fundos
exclusivos, offshores e trusts, e mediante a reoneração da tributação sobre
emprego, tudo sem transição, entrando em vigor no primeiro dia de 2024,
respeitando-se o princípio da anualidade. Com isso, serão arrecadados
adicionalmente de R$ 120 a R$ 150 bilhões por ano, o correspondente a 1% do PIB
nacional.
Outro ponto relevante não abordado na EC 132 – e que, portanto, precisa ser
objeto de Lei Complementar a ser enviada ao Congresso até 31 de março de 2024 –
é relativo à legislação sobre Imposto de Renda. O artigo 28 da EC diz respeito
à não tributação da inflação, porque tributação não é renda, mas sim um ônus
pesado para todos os contribuintes, onerados indiretamente pela falta enorme
defasagem na tabela de correção do IR. Como a tributação sobre inflação não
consta da Constituição e como não se pode criar impostos sem lei que os
estabeleçam, as tabelas de correção do IR precisariam ser obrigatoriamente
reajustadas anualmente pelo índice de inflação dos 12 meses anteriores, como
forma de reparar o estrago causado pela defasagem. Determinar essa
obrigatoriedade é, sem dúvida, obrigação do legislador para que a correção seja
automática, e não mais um favor do governo de plantão. Se a correção da tabela
do IR fosse aplicada em sua plenitude, mais de 90% dos trabalhadores assalariados
estariam isentos do IR. Isso sim seria justiça social.
Sem dúvida alguma, a reforma tributária era necessária e veio com atraso porque
o país convivia com uma infinidade de tributos e, como já se disse, com 26
legislações diferentes sobre o ICMS, por exemplo. O Brasil sempre e abusou de
tributos sobre consumo e emprego, em vez de equilibrar a carga tributária com
impostos sobre o lucro, capital e renda, modelo de há muito adotado pelos
países desenvolvidos. Chegamos ao absurdo de nossa tributação sobre consumo
alcançar patamar próximo de 15% do PIB, ou seja, perto de 45% do total da carga
tributária nacional. Um exemplo bem-acabado de regressividade, punindo
pesadamente os assalariados e os brasileiros das classes C, D e E.
O texto promulgado trouxe avanços, deve-se reconhecer. Mas a unanimidade e
ufanismo em torno dele estão longe de encontrar respaldo na realidade. Eu, como
cidadão comum, aplaudo com muitas restrições, pois não posso entender que,
depois de dezenas de anos, seja promulgada EC alterando o Sistema
Tributário Nacional onde teremos (i) novos tributos, (ii) a 2ª ou 1ª maior
alíquota de tributo sobre consumo do planeta, (iii) criação de diversos fundos
da união sem a definição das fontes de recurso e o pior (iv) nenhuma linha
sobre redução do gigantismo do estado brasileiro e menção a combate da
corrupção. Há muitos passos ainda a serem dados e o caminho é extenso e
perigoso. O otimismo exagerado não pode encobrir os riscos, ainda preocupantes.
Estamos diante de mais um caso em que a embalagem é melhor do que o produto
oferecido. Portanto, prudência!
Samuel Hanan - engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br