O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou um julgamento
de extrema importância para a saúde suplementar no Brasil. A controvérsia
envolve a obrigatoriedade de os planos de saúde cobrirem tratamentos que não
constam no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma decisão que
pode redefinir o acesso a tratamentos inovadores e impactar profundamente a
vida de milhares de pacientes.
O debate sobre a cobertura de procedimentos fora do rol da
ANS não é apenas uma questão técnica, mas envolve princípios fundamentais de
direitos humanos, sustentabilidade econômica e inovação médica. O julgamento
refletirá nos principais stakeholders envolvidos: pacientes, operadoras de
planos de saúde e o próprio sistema de saúde público. Além disso, essa decisão
pode influenciar a adoção de novas tecnologias e a pesquisa clínica no país.
Importante lembrar que a Lei nº 9.656/1998 foi a primeira a
regulamentar os planos de saúde no Brasil, estabelecendo um padrão de cobertura
e responsabilidade. Com a evolução do setor e o surgimento de novas
tecnologias, a necessidade de revisão e atualização das normas tornou-se
evidente, culminando na Lei nº 14.454/2022. Esta nova legislação redefiniu as
regras do jogo ao transformar o rol da ANS em exemplificativo, permitindo a
inclusão de tratamentos não listados, desde que sejam respaldados por evidências
científicas e recomendados por órgãos de saúde renomados.
Um exemplo prático dessa mudança é a cobertura de
terapias-alvo para câncer. Antes da Lei nº 14.454/2022, muitos pacientes
precisavam recorrer à Justiça para obter acesso a esses medicamentos, mesmo com
evidências claras de sua eficácia. Agora, com o rol exemplificativo, a
cobertura desses tratamentos pode ser mais facilmente garantida, desde que
cumpram os critérios estabelecidos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu anteriormente
que o rol da ANS era taxativo. Esta determinação significava que os planos de
saúde não tinham obrigação de cobrir procedimentos não listados, exceto em
casos excepcionais. O entendimento do STJ tinha como objetivo garantir
previsibilidade e controlar os custos para as operadoras, mas foi alvo de
críticas por parte de pacientes e especialistas em saúde que consideravam a
medida restritiva e insuficiente diante das necessidades reais dos pacientes.
Essa decisão gerou uma série de litígios judiciais, nos
quais pacientes buscavam, por meio de liminares, o acesso a tratamentos não
cobertos. A judicialização da saúde suplementar tornou-se um problema
crescente, onerando tanto o sistema judiciário quanto as operadoras de planos
de saúde.
O cerne da discussão reside na Lei nº 14.454/2022, que
promoveu alterações significativas na Lei dos Planos Privados de Saúde (Lei nº
9.656/1998). Essa nova legislação permite a cobertura de tratamentos que estão
fora do rol da ANS, desde que haja evidências científicas robustas que comprovem
a eficácia e segurança do tratamento. Essa exigência de comprovação científica
é crucial para evitar a cobertura de terapias experimentais sem validação.
A Unidas, representando entidades de autogestão em saúde,
questionou a validade parcial da Lei nº 14.454/2022. O principal argumento é
que a flexibilização do rol poderia comprometer a sustentabilidade dos planos
de saúde, levando a um aumento insustentável nas mensalidades e reduzindo a
acessibilidade para os usuários.
A Unidas argumenta que a inclusão indiscriminada de novos
tratamentos pode levar a um ciclo vicioso de aumento de custos, redução da base
de beneficiários e, consequentemente, menor qualidade dos serviços oferecidos.
Eles propõem a necessidade de um processo de avaliação mais rigoroso e
transparente para a inclusão de novas tecnologias no rol, garantindo que apenas
tratamentos com real valor terapêutico e custo-efetividade comprovados sejam
cobertos.
As operadoras, entretanto, argumentar que o rol taxativo é
essencial para a manutenção de um equilíbrio econômico, garantindo que os
custos dos planos permaneçam acessíveis. Isso porque, segundo as empresas, ter
um rol exclusivo fornece um guia claro tanto para as operadoras quanto para os
beneficiários, reduzindo disputas judiciais e incertezas em torno da cobertura.
A previsibilidade permite que as operadoras planejem seus orçamentos e invistam
em infraestrutura e tecnologia, melhorando a qualidade dos serviços oferecidos.
Elas defendem também que a ANS realiza avaliações detalhadas para incluir novos
tratamentos no rol, baseando-se em critérios de eficácia científica, segurança
e custo-benefício. Esse processo envolve a análise de estudos clínicos,
pareceres de especialistas e a avaliação do impacto financeiro da inclusão do
tratamento no rol.
Já na perspectiva de quem defende os pacientes resta claro
que o direito à saúde é um direito fundamental. Os pacientes argumentam que
devem ter acesso a tratamentos eficazes independentemente de estarem listados
no rol da ANS. Negar um tratamento com potencial de cura ou melhora da
qualidade de vida é visto como uma violação desse direito. Isso porque a
medicina evolui rapidamente, e muitas terapias emergentes oferecem esperança
para condições complexas e raras que não estão cobertas pelo rol. A aprovação
de novas drogas e terapias muitas vezes leva tempo, e a restrição do rol pode
impedir que pacientes tenham acesso a esses avanços.
Vale destacar que todos os pacientes devem ter igual acesso
aos melhores tratamentos disponíveis, baseados em evidências científicas e
adequados para suas condições médicas. A diferenciação no acesso a tratamentos
com base na cobertura do plano de saúde é vista como uma forma de discriminação
e injustiça.
Diversas entidades participaram do julgamento representando interesses
variados, desde associações de consumidores até sindicatos da indústria
farmacêutica. Essa diversidade de vozes permitiu uma discussão mais rica e
profunda, contribuindo para um julgamento mais informado e equilibrado. A
participação de associações de pacientes, como a Associação Brasileira de
Linfoma e Leucemia (Abrale), trouxe à tona as dificuldades enfrentadas por
pacientes que precisam de tratamentos não cobertos pelos planos de saúde. Por
outro lado, a participação de entidades como a Federação Nacional de Saúde
Suplementar (FenaSaúde) apresentou a perspectiva das operadoras, destacando os
desafios financeiros e regulatórios do setor.
O julgamento do STF tem potencial para modificar
significativamente o cenário da saúde suplementar brasileira. Se o STF decidir
por um rol exemplificativo, é provável que haja uma ampliação no acesso a
tratamentos, embora tal decisão venha acompanhada de desafios econômicos e
administrativos. Assim, médicos terão mais liberdade para prescrever
tratamentos inovadores, enquanto pesquisadores poderão ver suas inovações
terapêuticas aceitas mais rapidamente. A aprovação de um rol exemplificativo
pode incentivar a pesquisa clínica no Brasil, uma vez que novas terapias terão
maior chance de serem incorporadas ao sistema de saúde.
E uma decisão pelo rol exemplificativo possivelmente forçará
as operadoras a repensar seus modelos de negócios, considerando o aumento dos
custos com novos tratamentos. Será fundamental desenvolver estratégias para
mitigar esses impactos, possivelmente através de parcerias com governos e
acordos com fabricantes de medicamentos. As operadoras podem considerar a
implementação de programas de gestão de saúde, que visam a prevenção de doenças
e a promoção de hábitos saudáveis, reduzindo a necessidade de tratamentos mais
caros.
O julgamento do STF não apenas decidirá sobre o destino
imediato das coberturas dos planos de saúde, mas também sinalizará o caminho
para a inovação, acessibilidade e equidade em saúde no Brasil. Será crucial
acompanhar as implicações dessa decisão e promover um diálogo contínuo entre
legisladores, profissionais de saúde, operadoras e pacientes para construir um
sistema que equilibre a viabilidade econômica com o compromisso de atender
plenamente às necessidades de saúde da população.
Natália Soriani - advogada especialista em Direito Médico e de Saúde, sócia do escritório Natália Soriani Advocacia