Sistema de defesa da mãe precisa proteger contra infecções e, ao mesmo tempo, tolerar o feto; falhas nesse equilíbrio podem causar complicações como abortos e parto prematuro
Durante a gestação, o corpo da mulher passa por uma série de
transformações hormonais, metabólicas e imunológicas. Uma das mais importantes,
e menos conhecidas, é a modulação do sistema imunológico para permitir que o
organismo da mãe aceite o embrião — que, apesar de ser gerado por ela, carrega
material genético do pai e, portanto, é parcialmente "estranho" ao
corpo materno. Manter esse equilíbrio é um verdadeiro desafio biológico e,
quando falha, pode levar a complicações como abortos de repetição,
pré-eclâmpsia, parto prematuro ou insucesso em tratamentos de fertilização.
“A gestação é um estado de imunidade ajustada, e não de
imunossupressão completa. O sistema imune precisa continuar defendendo o corpo
da mãe contra infecções, mas sem reagir contra o embrião em desenvolvimento”,
explica a Dra. Klissia Pires, ginecologista e membro da AMCR (Associação Mulher, Ciência e Reprodução Humana do
Brasil). “Esse processo envolve um sofisticado jogo entre células que produzem
substâncias pró-inflamatórias e células que produzem substâncias reguladoras,
especialmente as células T reguladoras, que ajudam o organismo materno a
tolerar a presença do feto.”
Logo nas primeiras semanas de gravidez, o sistema imunológico
materno contribui para a implantação do embrião e para a formação de uma
placenta saudável. A própria placenta atua como uma barreira imunológica
parcial, liberando substâncias que controlam inflamações excessivas. No
entanto, esse mecanismo pode ser impactado por diversos fatores, como doenças
autoimunes, distúrbios de coagulação e até mesmo a idade da gestante.
Um dos exemplos mais relevantes é a Síndrome dos Anticorpos
Antifosfolípides (SAF), uma forma adquirida de trombofilia que tem origem
autoimune. Nessa condição, o sistema imune da mulher produz anticorpos que
atacam estruturas como fosfolípides ou proteínas ligadas à placenta, aumentando
o risco de trombose, restrição de crescimento fetal, perdas gestacionais em
diferentes trimestres e descolamento prematuro da placenta. “A SAF é um dos
fatores mais desafiadores quando falamos em reprodução. Mesmo em gestações
aparentemente saudáveis, ela pode causar complicações graves se não for
identificada e tratada adequadamente”, afirma a Dra. Klissia.
Outro fator que interfere diretamente na resposta imunológica é a
idade materna. Mulheres com mais de 35 anos tendem a apresentar um fenômeno chamado
imunossenescência, que é o envelhecimento natural do sistema imunológico. “Com
a idade, há uma redução na eficiência das células reguladoras e um aumento na
inflamação basal do organismo, o que chamamos de ‘inflammaging’. Esse ambiente
pode dificultar a implantação embrionária e favorecer rejeições imunológicas
precoces”, explica a médica.
A rejeição do embrião pelo sistema imunológico da mãe, embora
diferente da rejeição de um órgão transplantado, também pode ocorrer. Isso
acontece principalmente por falhas no desenvolvimento da tolerância
imunológica, o que compromete processos-chave como a implantação e a manutenção
da gravidez nos estágios iniciais. A produção de anticorpos contra estruturas
da gestação, como o trofoblasto, é uma das manifestações desse desequilíbrio.
Para muitas mulheres que enfrentam dificuldades para engravidar ou
manter a gestação, investigar a saúde imunológica pode ser um passo importante.
“Hoje sabemos que uma parte significativa dos casos de aborto de repetição ou
falhas de FIV (fertilização in vitro) está relacionada a alterações
imunológicas, que muitas vezes passam despercebidas nos exames de rotina”,
destaca a Dra. Klissia Pires.
A boa notícia é que a medicina reprodutiva já dispõe de exames e
abordagens terapêuticas para avaliar e tratar essas disfunções. “Com o avanço
da ciência e o maior conhecimento sobre imunologia da reprodução, conseguimos
oferecer alternativas mais seguras e eficazes para mulheres que antes não
tinham explicações claras para suas perdas gestacionais”, conclui a
especialista da AMCR.
Nenhum comentário:
Postar um comentário