Durante séculos, acreditou-se na racionalidade. O humano não só estaria em uma posição destacada na natureza, mas teria capacidade de agir sempre por deduções inteligentes. Humano e razão seriam sinônimos. Grande parte da
tradição filosófica, inclusive, desprestigiava a condição emocional humana, mal que ofuscaria a capacidade de decisão racional.
O primeiro filósofo que discrepou dessa dicotomia da condição humana (razão versus emoção) foi Espinosa, para quem o humano era uma unidade: um corpo e seus registros. Somos um corpo que, posto na vida, no andar por aí tem encontros que alegram ou entristecem e nos vão tecendo a pessoalidade. As expressões afetivas são apanágio da condição humana.
Os grandes literatos, à sua vez, sempre estiveram fora desse “modo de pensar”. Os gregos já nos contavam com características razoáveis e emocionadas em tragédias e comédias. Mas os grandes dentre os grandes, no sentido de conteúdo e repercussão pública, são Shakespeare e Dostoiévski. A condição profunda da humanidade está neles.
Como formulação teórica, a demonstração de que o humano tem uma porção em si que não está sob seu controle foi feita por Sigmund Freud. O psicanalista identificou o inconsciente, uma dimensão da mente, ou da história pessoal de cada um, que registra de modo dificilmente acessível, não só, mas com grande efeito o que nos desconforta recordar.
Não se tem acesso a certos fatos ou imaginações fantasiosas da própria vida que, por razões geralmente vindas da infância, são constrangedores. Tais fatos, contudo, estão ativos, compondo nossos prazeres e desprazeres, fazeres e não fazeres. Desde Freud, aceita-se que emoções abaladas peçam por uma prospecção das entranhas da existência.
Contudo, ainda em nossos dias, inadmite-se que alguém que não se justifique com
padecimento de dores n’alma tome atitude inexplicável, o que, em verdade,
fazemos ordinariamente. Tenta-se nos haurir gestos redutíveis a um
silogismo: raciocínios lógicos inferidos de premissas. Ora, comumente agimos e
só depois catamos justificativas para o ato.
Hoje se sabe que tomamos decisões movido\as mais por impulsos emotivos do que
por cálculos racionais. E o inconsciente está presente em cada gesto
deliberativo, mesmo em atos de negócio, os quais, supostamente, seriam
“friamente” calculados. Literatura sobre o assunto: Psicologia Econômica, Vera
Rita de Mello Ferreira, Campus.
Outro fator incidente na conduta é o ideológico (convicções de vida). Tendemos a nos comportar dentro dos padrões em que nossa concepção de mundo foi produzida. Exemplo de fenômeno de classe social: o Brasil, desde o Plano Real, da internacionalização econômica (governo FHC) e da queda da natalidade, vive o fenômeno do surgimento da Classe C.
Assim como outras classes o fazem, a multidão que ascendeu socialmente à
condição C adotou hábitos padronizados (veste, alimentação, divertimento etc.).
Há produtos específicos para demandas segmentadas. Seja produção de marketing,
seja opção, as diversas classes se autorreferem afetivamente, não
racionalmente, mesmo em fenômeno de massa.
De tal forma a identificação não pensada (o suposto interesse racional) com produtos comerciais ocorre, que ao tempo em que havia propaganda de cigarros consagram-se “modelos”: companhias de tabaco (e outras), tinham um rótulo a ser propagandeado para cada escala social ou cultural; a propaganda fala a língua e apela para os hábitos do nível objetivado.
E mais profundamente: estudiosos do comportamento compararam o naufrágio do Titanic (1912) com o do Lusitânia (1915). Hipótese elucidativa do que nos move: das 2.207 pessoas a bordo do primeiro, morreram 1.517; das 1.949 do segundo, 1.198. O Lusitânia naufragou em 18min, prevaleceu o instinto. Homens entre 16 e 35 anos sobreviveram mais que a média.
Já no Titanic, que levou 2h40min para ir ao fundo, houve tempo para se imporem formalidades e hierarquias sociais. Mulheres e crianças tiveram oportunidade de escapar bem acima da média. Mas entre os homens, morreram bem mais os das classes econômicas, pois os da primeira classe tiveram precedência em se safar (FSP/ciência, 02mar10). Lugar social ideologizado.
É dizer, por cavalheirismo, priorizaram-se mulheres e crianças; por disposição
ideológica de classe social, os mais pobres, deixaram-se morrer, aceitando
irracionalmente a primazia dos mais ricos. Sinceramente, eu não hesitaria em
lutar por análoga chance de sobrevivência. Um dia, talvez, o mundo será igual;
creio que quando as pessoas se considerarem como tal.
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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