Chegamos a Vila Verde no final da tarde. Era mês de abril, final dos anos 80. Fazia um friozinho gostoso. Depois de um dia inteiro dirigindo desde Lisboa, finalmente estávamos perto do nosso destino. No hotel, falei com a gerente sobre o motivo da nossa viagem: busca pela ancestralidade.
- E qual é a sua família? – perguntou-me a moça,
muito educada.
- Fonseca. Tenho aqui uma lista com os nomes dos
irmãos do meu avô.
- Deixe-me vêire, pediu-me, modulando a voz em
delicioso sotaque de fado.
Concluímos que o avô dela era irmão do meu avô,
ambos já falecidos. Apenas meia hora nos separava das nossas origens. Não deu
para esperar o dia seguinte. Eu, minha mulher, minha irmã e meu cunhado
deixamos o cansaço de lado e fomos assim mesmo, já começando a escurecer.
Na Freguesia de Paçô, entramos no primeiro bar,
falamos sobre o motivo da nossa viagem e o nome da família. Um homem que estava
ali perto ouviu nossa conversa e veio até nós. Era o marido de uma prima do meu
pai. A partir daí foi tudo festa e emoção. Para nós e para eles. Tinham até
fotos nossas, que a minha tia havia enviado nas suas correspondências.
Conhecermos vários parentes, estivemos no quarto
onde o meu avô nasceu, em maio de 1888, mês e ano da Abolição, por
coincidência. Tiramos fotos em frente à igrejinha onde ele foi batizado e onde
também se casou com a minha avó.
Atravessamos o Atlântico, rodamos vários quilômetros.
Quantos de nós já fizemos aventura semelhante? É a força da ancestralidade que
nos move e nos faz sentir orgulho de sobrenomes, que muitas vezes são comuns,
como o nosso. Mas é nosso, parte de uma cadeia de afetividades bem definida na
linha do tempo. São os laços de família, bem apertados, bem identificados.
Tempos depois, já no Rio de Janeiro, li no jornal
um artigo do Nei Lopes, compositor e estudioso das culturas africanas, em que
ele observava que os afrodescendentes brasileiros não têm sobrenomes africanos,
mas portugueses. É que os escravizados acabavam sendo identificados pelos nomes
dos seus senhores, como um certificado de propriedade. E os seus descendentes
têm que carregar esses sobrenomes pela vida afora. Como é que eu nunca tinha
pensado nisso antes?
Os negros eram capturados em regiões diversas da
África, com culturas, religiões e línguas diferentes, mas quando chegavam aqui
viravam uma coisa só: mão de obra, sem passado, sem futuro, sem história.
Misturados, apartados das suas famílias, vendidos separadamente dos filhos,
mulheres, maridos, amigos.
Os seus nomes de origem eram trocados por outros,
muitas vezes com requintes de crueldade, usando o mesmo nome do traficante que
os vendeu.
Lembrei-me da minha viagem a Portugal. Talvez tão
sofrido quanto a perda da liberdade seja a privação da ancestralidade.
Felizmente, muitos dos nossos irmãos
afrodescendentes já perceberam que, agora que o sobrenome é seu, podem, com sua
dignidade, fazer dele um motivo de orgulho e não de dor. Honrar esse sobrenome
será uma homenagem aos seus antepassados e não aos senhores deles.
Conhecer um pouco da história ainda é o melhor
caminho para compreender, respeitar e exercitar a empatia em relação aos nossos
irmãos afrodescendentes.
Chico Fonseca é escritor e arquiteto, autor do livro “Amores, Marias,
Marés”, publicado pela Editora Pensamento.
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