No
último mês de junho, os usuários dos planos de saúde foram surpreendidos com a
decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu pela taxatividade,
como regra, do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (RPEs) da Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS). O que esse posicionamento significa na prática?
Tornou-se mais difícil aos usuários terem êxito, ao buscarem o Poder
Judiciário, para acessar qualquer procedimento que não estivesse descrito
na lista taxativa da agência reguladora.
Até
esse momento da decisão do STJ, desde que houvesse indicação médica
fundamentada, havia a possibilidade de custeio pelas operadoras de um
tratamento fora do rol, segundo entendimento dos magistrados presente em farta
jurisprudência, inclusive do STJ.
Ao
sentir a restrição ao direito de judicializar, os usuários começaram a se
manifestar de forma contrária ao entendimento firmado pelo STJ sobre rol da ANS
ser taxativo, requerendo que o rol continue a ser exemplificativo. As alegações
foram que muitas coberturas seriam negadas de imediato com a justificativa de
ser o rol taxativo. Muitos também afirmaram também que haveria sobrecarga
no SUS, que precisaria absorver a demanda remanescente da não cobertura dos
planos. O que, na verdade, já ocorre, inclusive de forma a fazer o SUS credor
de alguns milhões reais das operadoras.
Na
sequência, para dar forma à insatisfação dos usuários, foram apresentados no
Congresso alguns projetos de lei com o escopo de que o rol seja uma “referência
básica” para a cobertura dos planos de saúde, ou seja, volte a ser
exemplificativo. Um deles, dentre oito, foi aprovado pela Câmara dos Deputados
e pelo Congresso.
Pelo
texto do PL 2.033/2022, os planos de saúde poderão ser obrigados a financiar
tratamentos de saúde que não estiverem na lista mantida pela Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS). Para tanto, faz-se necessário que haja uma das
seguintes situações: tenha eficácia comprovada cientificamente; seja
recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema
Único de Saúde (Conitec); ou seja recomendado por, pelo menos, um órgão de
avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.
O
projeto beneficiará, caso sancionado, cerca de 49 milhões de usuários de planos
de saúde e famílias. Dentre esses, muitos já buscaram o Judiciário por
certo. Para se ter uma ideia de números, só em São Paulo, nos últimos 10
anos, as ações aumentaram em 391%, segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo de
Estudos sobre Planos de Saúde, da Faculdade de Medicina, da USP. Nos casos
julgados em segunda instância, entre as queixas que mais levam os consumidores
à Justiça, estão problemas com exclusões de cobertura e negativas de
tratamento, que representam 60,4% das decisões.
Necessário,
porém, observar que há dois lados com direitos que precisam ser reconhecidos
pela sociedade. Não há vilões e mocinhos...ou vilões e vítimas. As operadoras
de planos de saúde fazem parte da chamada saúde suplementar, a qual, por sua
vez, faz parte do chamado Sistema Nacional de Saúde. No entanto, as operadoras
são pessoas de direito privado, que cujo negócio é a Saúde, ou seja, necessário
que haja lucro. Também é relevante considerar que é firmado um contrato entre
as partes (usuário e operadoras), o qual traz direitos e obrigações para ambas
as partes, firmado de forma livre. Na verdade, a Saúde Suplementar exerce um
importante papel no sistema, já que o SUS não comportaria o atendimento de
todos os cidadãos de forma eficiente.
Também
se deve considerar que as operadoras de planos de saúde têm como fundamento
principal o chamado mutualismo. Isso significa que todos os usuários de uma
chamada carteira (ou grupo) estão pagando por tudo o que todos usam, trata-se
de os próprios usuários financiarem seus cuidados de saúde. Alguns utilizam
sempre seus planos de saúde, outros, excepcionalmente. Alguns possuem
doenças crônicas; outros, não. E, em razão dessa diversidade de riscos, é
possível manter o sistema em funcionamento. No entanto, quando aumenta a
chamada sinistralidade, muitas pessoas usam ou se algumas usam para tratamentos
muito caros, há um desequilíbrio financeiro entre a previsão do risco e as
efetivas despesas.
Também
se deve considerar, ao se falar sobre a saúde suplementar, outros fundamentos
importantes: a livre iniciativa e a segurança jurídica. No que se refere à
segurança jurídica, é essencial que a legislação não mude frequentemente, e, em
se tratando de saúde suplementar, já existe uma agência criada exatamente com o
escopo de regulamentar as relações no setor de saúde e fiscalizar o sistema.
Regras claras são essenciais quando se decide empreender.
A
Constituição dispõe, em seu artigo 196, que todos devem ter acesso à saúde e
cabe ao Estado criar políticas públicas que reduzam o risco da doença, bem como
garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção,
proteção e recuperação. Entretanto, essa mesma garantia, de acesso igualitário
e universal, não é obrigação do sistema de saúde suplementar, daí
que, em alguns casos pontuais, o Judiciário é chamado a, de forma coercitiva,
obrigar que operadoras cubram certos tratamentos, em especial quando o direito
à vida precisa estar sob tutela do Estado, ainda que não haja previsão no rol
da ANS.
Fato
é não se pode, dizer, portanto, que não haveria nenhuma margem para que, em
casos excepcionais, o usuário pudesse recorrer à judicialização. Isto porque
que a decisão do STJ incluiu algumas situações em que, tratamentos
poderiam ser cobertos: quando não houver substituto terapêutico ou esgotados
os procedimentos do rol da ANS (ii) não tenha sido indeferido expressamente,
pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (iii)
haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina
baseada em evidências; (iv) haja recomendações de órgãos técnicos de renome
nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros.
Ainda
assim, nesse momento, usuários e legisladores têm a aprovação do PL no
Congresso Nacional. As novas regras dependem apenas da sanção presidencial para
entrar em vigor e deixar de valer o rol da ANS como taxativo, tal qual desejava
o STJ e as Operadoras.
Mesmo
com a futura lei, será provável que muitos casos continuem desaguando no
Judiciário, pois as particularidades das enfermidades e dos tratamentos são
diversos. Derrubar o rol taxativo abrirá uma série de novas abas e
possibilidades de jurisprudências para novos e antigos casos.
Algumas
vozes se pronunciaram de forma contrária à volta do rol exemplificativo. A ANS
manifestou-se no sentido de que o rol exemplificativo, da forma como o texto do
PL apresenta, provoca a “ruptura do equilíbrio econômico-financeiro dos
contratos”, com impactos na ordem econômica. Outra voz que se posicionou
contrária à derrubada do chamado rol taxativo proposta pelo STJ foi do próprio
Ministro da Saúde que considera que a legislação apresenta de forma objetiva o
processo para incorporação de novas tecnologias em saúde, bem como apontou que
é necessário avaliar o impacto da ampliação ao acesso com relação aos custos
que certamente serão repassados aos usuários.
A
questão é como tornar sustentável o setor de saúde, de forma a que todos possam
acessar o sistema quando necessário? Primeiro, essencial promover a saúde (e
não apenas tratar a doença). Segundo, no Sistema Público necessário sempre
buscar uma melhor utilização de recursos; no Sistema Suplementar, equilibrar a
balança financeira de forma a que os planos de saúde visem a atenção primária
de saúde e haja recursos para novas tecnologias serem incorporadas, com mais
brevidade, para os tratamentos destinados aos casos mais complexos, aos doentes
crônicos e aos pacientes com doenças raras.
Ampliação
de coberturas imposta pela lei seria o caminho? Quem pagará a conta? Parece
que, em breve, a história irá responder.
Sandra
Franco - consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde,
doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora
jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em
Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de
Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018.
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