Estudo realizado em reunião estritamente feminina de um grupo dos Alcoólicos Anônimos verificou um forte sentimento de rejeição e solidão entre as participantes, provocado pelo estigma social em relação ao alcoolismo em mulheres (foto: Natálie Šteyerová/Pixabay)
Um estudo qualitativo conduzido por pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) sugere que a identidade de gênero influencia a forma como o dependente alcoólico lida com sua condição.
A investigação foi coordenada pelo professor Edemilson de Campos, com apoio da FAPESP e colaboração de Nádia Narchi, também professora da EACH-USP. Os resultados foram divulgados na revista Drug and Alcohol Review.
Campos conta que obteve permissão
para frequentar as reuniões estritamente femininas de um grupo dos Alcoólicos
Anônimos (AA) na cidade de São Paulo. E foi
nesses encontros, bem como nas entrevistas realizadas com as participantes, que
recolheu os depoimentos em primeira mão utilizados em seu estudo.
“Grupos do
AA que reúnem apenas mulheres são frequentes nos Estados Unidos. Mas no Brasil
não. Os AA desencorajam esse formato, alegando que o alcoolismo é um só e afeta
igualmente homens e mulheres. Mas as mulheres que entrevistei pensam diferente
e me disseram que se sentiam intimidadas nas reuniões mistas. Algumas
relataram, inclusive, que haviam sido vítimas de assédio e piadas sexistas
durante os encontros”, diz o pesquisador.
Ele
informa que existem 120 grupos de Alcoólicos Anônimos na cidade de São Paulo.
Mas apenas dois deles promovem reuniões estritamente femininas: um na zona
norte da cidade e outro no bairro de Santa Cecília. “Como os AA não possuem
estrutura hierárquica, os grupos gozam de bastante autonomia, inclusive com
coordenação rotativa. Solicitei permissão para frequentar as reuniões femininas
dos dois grupos, mas apenas as participantes da zona norte concordaram”,
afirma.
Campos
informa que essa reunião congregava 15 mulheres, que se reuniam todo sábado:
umas frequentadoras recentes, com apenas dois meses de AA; outras com mais de
30 anos de participação. De modo geral, eram mulheres com padrão econômico e
nível de escolaridade mais baixo, algumas casadas com participantes dos
Alcoólicos Anônimos.
É
importante esclarecer que os Alcoólicos Anônimos consideram o alcoolismo como
uma “doença crônica e incurável”, decorrente de uma predisposição física aliada
à obsessão mental pelo uso do álcool. E acreditam que não há força de vontade
individual capaz de vencer essa doença. A rede de apoio formada pelo próprio
grupo é um suporte indispensável para conviver sobriamente com ela. Os Alcoólicos
Anônimos definem a si mesmos como uma “irmandade de homens e mulheres”, não
ligada a “nenhuma seita ou religião, nenhum movimento político, nenhuma
organização ou instituição”. A “irmandade” não cobra taxas nem mensalidades,
mas possui autossuficiência financeira graças às contribuições voluntárias de
seus membros.
“Já
havíamos estudado grupos com reuniões mistas. O que fizemos, com muito
respeito, nessa reunião estritamente feminina, foi uma pesquisa de tipo
etnográfico, recolhendo relatos individuais sobre relacionamento, família,
trabalho e outros assuntos de interesse das participantes. A expressão ‘dor da
alma’ foi a forma como essas próprias mulheres caracterizaram sua condição,
marcada por um forte sentimento de rejeição e solidão devido ao estigma social”,
diz Campos.
Um aspecto
notável constatado pelo pesquisador foi que, enquanto nas reuniões mistas os
homens enfocavam seus relatos no trabalho e em outros aspectos impessoais da
vida prática, as participantes da reunião estritamente feminina falavam muito
mais de sua intimidade. “Por isso, reuniões só de mulheres são muito
importantes. Por oferecerem um espaço seguro de expressão. Essas reuniões
tinham o poder de devolver às participantes um sentimento de dignidade”,
argumenta.
De maneira geral, o pensamento socialmente condicionado é bastante condescendente com o pai que negligencia suas obrigações paternas. Mas é implacável com a mãe que procede de forma semelhante. “O sentimento de que o alcoolismo possa tê-las impedido de cumprir aquilo que a sociedade esperava delas era algo que pesava demais para essas mulheres”, conta Campos.
Critérios
Em sua quarta e mais difundida
revisão, o Manual de Diagnóstico e Estatística das
Perturbações Mentais (DSM, na sigla em inglês), da Associação
Americana de Psiquiatria, caracteriza como dependente de substâncias o
indivíduo que tenha preenchido três ou mais dos seis seguintes critérios:
gastou grande parte do seu tempo para conseguir, usar ou se recuperar do efeito
da substância; usou a substância com maior frequência ou em maior quantidade do
que pretendia; precisou de quantidades maiores para obter o mesmo efeito; não
conseguiu diminuir ou parar de usar a substância; continuou a utilizar a
substância mesmo após ter conhecimento de que ela estava causando ou agravando
problemas de saúde físicos ou mentais; e deixou de fazer ou diminuiu o tempo
dedicado às atividades sociais, de trabalho ou de lazer devido ao uso da
substância.
No caso do
álcool e de outras drogas que provocam dependência química (como tranquilizantes
benzodiazepínicos, estimulantes anfetamínicos, cocaína, crack ou similares),
além dos seis critérios mencionados foi agregado um sétimo, definido pela
manifestação de sintomas de abstinência, que variam de acordo com a substância.
Nesse caso, o indivíduo é considerado dependente se preenche três de sete
critérios.
Esses
critérios se aplicam igualmente a homens e mulheres. Mas o que Campos verificou
em seu estudo foi que, além dessa classificação geral, a vivência do alcoolismo
e de seu tratamento é fortemente influenciada pelo marcador social de gênero.
“Ao contrário da ideia prevalente nos AA, constatamos que as mulheres precisam,
sim, ter um espaço seguro para expor sua ‘dor da alma’”, conclui.
Pesquisa realizada
em 2017 pela Fiocruz, sobre o uso de drogas pela população brasileira,
verificou que aproximadamente 2,3 milhões de pessoas, entre 12 e 65 anos,
apresentaram dependência ao álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa. A incidência
foi 3,4 vezes maior entre os homens (2,4% da população masculina) do que entre
as mulheres (0,7% da população feminina). Mas os estudiosos do assunto
consideram que este último percentual pode ter sido subestimado, devido ao
forte estigma social em relação ao alcoolismo feminino. Com medo do que os
“outros” poderiam pensar, dizer ou fazer, muitas mulheres dependentes podem ter
escondido sua condição.
O artigo The ‘wounded soul’: What alcoholism means to participants of a
women-only Alcoholics Anonymous meeting in São Paulo, Brazil pode
ser acessado em: onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/dar.13430.
José Tadeu
Arantes
Agência
FAPESP
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