Estudo ouviu 2.589 participantes de 10 cidades nas cinco regiões do país para entender como as meninas vivem, o que esperam para o futuro, como se sentem como meninas, as diferenças entre gêneros e seus impactos. Meninas negras são maioria entre as que trabalham e são mães na adolescência
A
Plan International Brasil, organização humanitária, não-governamental e sem
fins lucrativos que promove os direitos das crianças e a igualdade para as
meninas, está lançando uma nova edição da pesquisa Por
Ser Menina no Brasil, que traz um olhar sobre a vida das
meninas e as diferenças de gênero dentro de casa, na escola, on-line, na rua e
na sociedade como um todo, aprofundando a compreensão sobre o impacto que essas
desigualdades causam. O estudo se debruça também sobre o entendimento a
respeito do que elas querem para o futuro e como se preparam para isso, além de
uma percepção sobre o que é ser menina.
Realizada
no contexto da pandemia, a pesquisa adotou um modelo híbrido quantitativo
(survey) e qualitativo (por meio de reuniões em grupos focais), para ouvir
2.589 participantes de 14 a 19 anos. As meninas são de dez cidades nas cinco
regiões brasileiras: Brasília (DF), Cachoeirinha (RS), Codó (MA), Formosa (GO),
Jacareí (SP), Manaus (AM), Maués (AM), Porto Alegre (RS), São Luís (MA) e São
Paulo (SP). Assim, a pesquisa representa uma tendência do que é ser menina,
especialmente nas capitais e cidades médias (de 100 mil a 350 mil habitantes).
A pesquisa foi encomendada pela Plan International Brasil e executada pela
consultoria Tewá 225.
O
estudo mostra que 85,7% das participantes gostam de ser meninas,
um percentual superior aos 75,4% registrados em 2014, quando a Plan realizou a
primeira edição – naquela ocasião com meninas de 6 a 13 anos. A pesquisa revela
que a percepção das jovens sobre o que é ser menina é influenciada por seu
contexto de interações e sua rede de cuidados. Os desafios variam, mas
permanecem, em todos os seus ambientes de interação: em casa, na escola, na
rua, na internet e na sua comunidade. Mas não é fácil ser menina: 69,4% delas
revelaram sentirem seus direitos desrespeitados por serem meninas/mulheres.
“Sabemos o quão relevante é traduzirmos em dados o que acontece com as meninas
para que possamos engajar mais atores na transformação da sociedade que
vivemos”, afirma Cynthia Betti, diretora executiva da Plan International
Brasil.
Os
modelos sociais existentes ainda reforçam desigualdades de gênero e atrapalham
o pleno desenvolvimento das meninas. Dentro de casa, elas ainda
realizam o dobro de trabalhos domésticos que os meninos (67,2% das meninas
contra 31,9% dos meninos), o que valida a tese de que as
meninas são precocemente responsabilizadas pelo cuidado com o lar e com as
pessoas. Assim, elas têm menos tempo para os estudos, lazer e atividades de
desenvolvimento para a vida. A carga de trabalho doméstico piorou durante a
pandemia: 54,6% das meninas disseram que as tarefas aumentaram.
“Quando
minha avó faleceu de Covid, as coisas ficaram mais difíceis. É como se eu não
conseguisse me manter na escola, não conseguia cuidar direito dos meus irmãos,
limpar a casa, enquanto minha mãe estava fora. O que mais me chateou foi que
ela [mãe] não entendeu, ela simplesmente queria que eu tivesse notas boas
independente de tudo, que eu limpasse a casa independente de tudo”, afirma uma
menina de 14 anos, de Manaus.
“Na
nossa vila, a questão mais evidente é das tarefas domésticas. É mais evidente a
desigualdade entre meninos e meninas. Sempre que você vai numa casa, você vai
ver uma menina lavando louça, varrendo e o menino lá, sem fazer nada”, diz uma
menina de 18 anos, de São Luís.
Dentro
de casa
A
pesquisa aponta que as meninas realizam mais atividades dentro de casa do
que fora dela, em comparação com os meninos. Enquanto elas navegam
na internet, estudam e fazem tarefas domésticas, eles saem mais para
trabalhar/ganhar dinheiro, brincar, socializar com amigos na rua e praticar
esportes. Até pelo tempo que passam dentro de casa, o ambiente doméstico é onde
as meninas se sentem seguras e cuidadas. Mas a casa também pode ser um ambiente
carregado de conflitos, silenciamentos e punições. As mães desempenham um papel
de destaque e são as responsáveis pelos lares (63,1%). É delas também o papel
de referência e abertura para todo tipo de conversa.
“Aqui
em casa, sou bem aberta com a minha mãe, ela sempre tenta me ajudar, dar
conselhos, falar sobre as coisas. Ela me ajuda bastante”, afirma uma menina de
15 anos, de São Paulo.
Violência
É
dentro de casa também que as meninas mais sofrem com a violência física
(30,7%), violência sexual (24,7%) e violência psicológica (29,5%).
Quase todas as participantes da pesquisa (94,2%) já presenciaram ao menos uma
situação de violência com elas ou pessoas próximas.
A
maior parte das meninas busca a rede familiar para pedir ajuda (28,4%). Mas um
dado preocupante é de que 25,9% das meninas não procuraram ajuda.
Elas relatam que os pais e adultos responsáveis não acreditaram nelas, o que
levou ao não encaminhamento dos casos.
Depois
da casa, a escola também é apontada como um local de violência. É onde elas mais
sofrem assédio (32,4%) e violência de gênero (25,4%), e o segundo maior na
violência sexual (24%). Já a rua é um ambiente hostil: 57% das
meninas sentem medo de andar na rua e 23,4% se sentem humilhadas.
“Na
escola que eu estudava, no Ensino Médio, era dia de educação física e eu fui
com shorts saia de educação física. Fui chamada pela vice-diretora e ela disse
que tinha que trocar minha roupa. Perguntei por que se não tinha regras de
vestimenta na escola. E aí ela disse que se eu fosse assediada com aquela roupa
eu não teria direito de reclamar e que eu estaria pedindo para ser assediada
por causa da roupa que eu tava usando. Ouvir isso de uma outra mulher, mais
velha, diretora, que deveria me proteger, foi horrível”, relata uma jovem de 19
anos, de Porto Alegre (RS).
Saúde
As
meninas que já são mães representam 3,2% das participantes da pesquisa.
Entre elas, 74,1% são negras, 21% brancas, 3,7% indígenas e 1,2% amarelas. Na
faixa etária, 48,2% têm entre 18 e 19 anos, 37% têm entre 16 e 17 anos e 14,8%
têm 14 ou 15 anos. As meninas negras são as mães na faixa etária mais jovem, o
que pode representar maior vulnerabilidade social.
A
menstruação ainda é um tabu para meninas e adultos.
Algumas delas mencionaram que são retiradas das aulas de educação física quando
estão menstruadas, evidenciando um desconhecimento de como abordar o assunto. O
banheiro feminino da escola também foi destacado como um ambiente hostil pelos
olhares julgadores que ocorrem entre as meninas no período menstrual.
Embora
92,4% das meninas tenham respondido que têm conhecimento sobre prevenção
sexual, apenas 44,1% já passaram por uma consulta ginecológica.
A pesquisa revela que a renda familiar influencia diretamente o acesso às consultas.
Meninas com renda familiar acima de 6 salários-mínimos são as que mais
responderam positivamente sobre o tema, com 67,8%. Já entre as que estão em
famílias com renda familiar de até 1 salário-mínimo, a taxa de consultas cai
para 31,6%. Em geral, as meninas que mais foram a uma consulta ginecológica são
as que usam algum método anticoncepcional.
A
saúde mental das meninas também se tornou um dos temas da pesquisa. Sobretudo
por causa da pandemia, elas relataram uma piora significativa na saúde mental
(76,6%), com os impactos do aumento do convívio familiar
excessivo, da suspensão das atividades de sociabilidade, do uso excessivo de
telas e de uma sensação pronunciada de solidão.
“Hoje
em dia, faço um acompanhamento, gosto muito, me sinto muito segura, desabafo
sobre tudo que tá acontecendo, mas por causa dessa pandemia”, relata uma menina
de 16 anos, de Formosa (GO).
Sexualidade
Uma
das dimensões da pesquisa foi a diversidade das meninas quanto à sexualidade:
99,5% das meninas tiveram o sexo do nascimento classificado como feminino, 0,3%
masculino e 0,2% intersexo. Quando questionadas sobre a identidade de gênero,
95,2% responderam que se compreendem como cisgênero, 0,9% transgênero e 3,9%
como não binárias. Já em relação à orientação sexual, 62,6% das
meninas se identificaram como heterossexuais, seguido de 23,6% bissexuais, 4,7%
pansexuais, 2,9% lésbicas, 1,6% assexuais e 4,6% outras.
A
equipe de pesquisa encontrou barreiras para dialogar sobre o assunto por falta
de vocabulário das meninas, que, no geral, demonstram pouco repertório quando o
assunto é gênero, orientação sexual e transexualidade. Todas se posicionam a
favor de respeitar as diferenças e têm uma postura educativa em relação às gerações
mais velhas. O maior repertório está entre as meninas que pertencem à
comunidade LGBTQIAP+.
As
meninas percebem na prática a diferença de liberdade para experimentarem sua
sexualidade em relação aos meninos, identificando barreiras de gênero
associadas a julgamentos que as desvalorizam enquanto ressaltam a sexualidade
dos meninos como algo positivo. As barreiras e os julgamentos ocorrem tanto na
família quanto com amigos.
Educação
As
meninas veem a educação como parte importante de sua formação para o futuro e
querem fazer faculdade. Mas há uma série de limitações pelo caminho. Estudar é
a segunda principal atividade realizada por elas (a primeira é
navegar na internet), mas apenas a quinta na escala de prioridade dos meninos.
Em geral, as meninas estão dentro da idade esperada para os ciclos escolares.
Quase
uma a cada cinco meninas (18,2%) precisou interromper os estudos.
A pandemia gerou profundas dificuldades de acesso das meninas às escolas e foi
citada por 19,3% das participantes como a causa da exclusão escolar. No
Maranhão, essa causa chegou a 30,7% e no Amazonas a 21,4%. As meninas se sentem
exaustas com as aulas on-line. O segundo motivo mais citado foi a perda de
vontade de estudar, com 17,6% do total. Há também outras razões: 11,2% das meninas
amazonenses deixaram de estudar para ajudar nos afazeres domésticos e 22,8% das
gaúchas que pararam de estudar alegaram que a razão foi a falta de professores
nas escolas.
O
cruzamento de dados educacionais com a dimensão territorial permite verificar que
o Amazonas é o estado onde houve maior percentual de exclusão escolar
(32,8%), divergindo da tendência dos demais estados e das
médias nacional (7,6%) e regional (Norte com 9,2%), seguido do Rio Grande do
Sul como o segundo maior (18,6%). Já o estado de Goiás é o que apresentou menor
percentual de meninas que pararam de estudar, com 12,1%, ainda assim, o dobro
da média nacional apontada pelo IBGE em 2019.
Vale
destacar ainda como a gravidez precoce prejudica os estudos das meninas: 4,9%
delas deixaram de estudar por causa da gestação. Esse número foi a 8,2% entre
as meninas que deixaram a escola no Amazonas e a 6,8% no Maranhão.
“Eu
tinha uma colega que os pais dela têm um supermercado e ela é a única, de três
irmãos, (outros dois meninos) que teve que parar de estudar, porque os dois
irmãos dela queriam jogar bola, entrar naquelas escolas e ela teve que parar de
estudar para assumir o supermercado. Eu achei isso super errado, porque tão
privando ela de um direito básico, que é educação”, conta uma menina de 16
anos, de Cachoeirinha (RS).
Ambiente
on-line
Os
horizontes das meninas estão se ampliando e o contexto da pandemia transformou
o ambiente on-line em mais um dos espaços frequentados pelas meninas. Navegar na
internet é a atividade que elas realizam com mais frequência e 83,4% aumentaram
o tempo conectadas durante a pandemia. É no mundo digital que
elas se informam, interagem socialmente e se aliam a movimentos sociais.
Mas
o ambiente on-line também é hostil, um espaço de assédio onde há uma diferença
clara e marcante sobre como homens e mulheres são avaliados e julgados,
especialmente nas redes sociais e nos jogos on-line – conforme a pesquisa
global “Liberdade On-line?”, da Plan International já havia apontado em 2020.
As meninas denunciam a hipersexualização das mulheres na internet: 70,2% das
meninas identificaram ter sofrido violência de gênero na internet, com o
vazamento de dados, golpes e assédio sexual.
O
acesso das meninas à internet é realizado, em sua maioria, com equipamentos
eletrônicos próprios: 78,3% das participantes têm celular, notebook ou tablet –
o que reflete o acesso das meninas à própria pesquisa.
Trabalho,
sonhos e futuro
Quase
uma a cada cinco meninas (18,6%) trabalha.
Esse número aumenta no Rio Grande do Sul (26,1%) e em São Paulo (21%). Já Goiás
(16,3%), Amazonas (14%) e Maranhão (13,7%) tiveram uma média menor. No geral,
há uma concentração de trabalhadoras com idade entre 18 e 19 anos (43%),
seguido de 16 e 17 anos (41,4%). No recorte por raça, 37,4% das meninas que
trabalham são negras, 20,3% são amarelas, 20% são brancas e apenas 4,5% são
indígenas.
As
meninas que trabalham o fazem por conta própria e costumam recorrer a bicos,
aplicativos e trabalhos informais (29,1%). Também no mercado informal estão
outras 26,6%. Apenas 24,9% das trabalhadoras têm carteira de trabalho assinada
(CLT).
As
meninas estão em um cenário de instabilidades, informalidade e incertezas em
relação ao trabalho. Essa informalidade, que pode comprometer o futuro das
meninas, ainda não surge como um fator de tanta preocupação. Para 64,6% das
meninas, as atividades realizadas atualmente as levarão ao futuro que desejam.
A
conclusão da pesquisa destaca um ponto importante sobre os sonhos das meninas,
que incluem o sucesso profissional e a independência financeira.
“Em grande parte, esse desejo está atrelado a não repetir os padrões
familiares: mães que eram dependentes de maridos financeiramente e que
precisaram romper com dureza essas relações e adentrar a realidade de mães solo
com todos os pesos que a sociedade impõe a isso, ou ainda, manter-se em
relações não saudáveis por conta de dependência financeira. Entre as conquistas
que elas mais desejam, mencionam casa própria, carro, viajar para o exterior e
cuidar dos genitores.”
O
estudo também destaca que as meninas sonham com um futuro sem filhos, e por
vezes sem relacionamentos amorosos. Há relatos de “quero estar sozinha”, “quero
morar sozinha”, “sem filhos”, “sem uma família tradicional” em todas as
regiões. “Esse fato pode estar relacionado às meninas cada vez mais rejeitarem
modelos passados de relacionamento, família, encontrando-se em um campo de
oportunidades para rediscutir o que é relacionamento saudável, os valores que
levam uma mulher a querer ou não a maternidade, seus direitos, e por fim, o que
representa sua independência”, destaca outro trecho da pesquisa.
Metodologia
A
pesquisa contou com a chancela da Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais (FLACSO), que avaliou a aprovou em seu comitê de ética todos os
instrumentos de pesquisa e de proteção e salvaguarda. A faculdade também
acompanhou o processo, validando os ajustes realizados no período de pesquisa
para ampliar a abordagem do público-alvo.
“Foi
um desafio coletar dados primários durante a pandemia, especialmente pelo risco
do trabalho de campo. Porém nossa abordagem metodológica permitiu consorciar
estratégias on-line e presenciais em territórios de menor acesso à internet, a
fim de garantir a representatividade das meninas no estudo”, diz Luciana Sonck,
sócia fundadora da Tewá 225.
nos.
Sobre
a Plan International
A
Plan International é uma organização humanitária, não-governamental e sem fins
lucrativos que promove os direitos das crianças e a igualdade para as meninas.
Acreditamos no potencial de todas as crianças, mas sabemos que isso é muitas
vezes reprimido por questões como pobreza, violência, exclusão e discriminação.
E as meninas são as maiores afetadas. Trabalhando em conjunto com uma rede de
parcerias, enfrentamos as causas dos desafios de meninas e crianças em situação
vulnerável. Impulsionamos mudanças na prática e na política nos níveis local,
nacional e global, utilizando o nosso alcance, a nossa experiência e o nosso
conhecimento. Construímos parcerias poderosas há mais de 80 anos e que se
encontram hoje ativas em mais de 70 países.
Sobre
a Plan International Brasil
A
Plan International chegou ao Brasil em 1997. Desde então, se dedica a garantir
os direitos e promover o protagonismo das crianças, adolescentes e jovens,
especialmente meninas, por meio de seus projetos, programas e ações de
incidência e de mobilização social. Tem também viabilizado condições de
subsistência em comunidades que sequer tinham acesso a recursos essenciais,
como a água. Implementamos projetos no Maranhão, no Piauí, na Bahia e em São
Paulo. Nossas estratégias, atuando em rede com outras organizações do terceiro
setor e movimentos sociais, têm pautado as demandas das meninas em novos
espaços do Legislativo, Executivo e na sociedade civil, alcançando todo o
território nacional. Considerada uma das organizações mais confiáveis do país,
a Plan International Brasil ficou entre as 100 Melhores ONGs do país em 2020 e
recebeu a certificação A+ no Selo Doar Gestão e Transparência. A Plan acredita
que um mundo melhor para as meninas é um mundo melhor para todas as pessoas. E,
para construir uma sociedade mais justa e igualitária, conta com o apoio de
embaixadoras como Ana Paula Padrão, Thainá Duarte, Joyce Ribeiro e Astrid
Fontenelle. Mais informações: www.plan.org.br
Sobre
a Tewá 225
Especializada no
atendimento a desafios territoriais complexos, a consultoria Tewá 225 atua,
desde 2013, apoiando organizações, empresas e governos com programas e projetos
voltados à transformação social e ao impacto positivo. Suas duas frentes de
atuação são a geração de conhecimento e as dinâmicas territoriais, onde atuam
desde a formulação da estratégia de intervenção nos territórios até a avaliação
de impacto, com metodologias participativas.
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