A palavra “humanidade” é ambígua. Sem prejuízo de outros, ela tem pelo menos dois significados. O primeiro para designar o conjunto de seres humanos existentes na Terra. O segundo, como designador das características particulares e específicas da natureza humana. Para os fins aqui propostos, considerarei “humanidade” como as características do ser humano que fazem sua vida ser mais que apenas a sobrevivência física.
A vida eleva-se além da necessidade de alimento,
abrigo e repouso, e a realização da “humanidade” do humano requer os chamados
“bens do espírito”: a linguagem, a leitura, o conhecimento, a música, o teatro,
o cinema, as relações sociais, o lazer, a religião, as artes, os esportes e
outras atividades além da mera existência do corpo.
O humano, dotado que é de consciência, linguagem,
memória, emoções, costumes e código moral, não nasce feito e acabado. Na
expressão de Ortega y Gasset (1833-1955), “a vida nos é dada, mas não nos é
dada pronta” e, conforme Kant (1724-1804), “o homem é o único animal que
precisa ser educado”. No transcurso de seu desenvolvimento e
autoconstrução, o homem tem, nos bens culturais, os meios para exercer sua
humanidade, desde os bens da natureza até aqueles construídos por obra do
próprio homem.
O conjunto de bens e serviços que a humanidade,
como conjunto de humanos, inventou, desenvolveu e aperfeiçoou, para seu próprio
lazer e desfrute emocional e espiritual, é enorme e variado. Música, pintura,
literatura, cinema, teatro, escultura, dança, esportes, rituais, contatos com a
natureza e outras atividades e coisas são bens culturais que devem ser
produzidos, desfrutados, preservados e legados às gerações futuras.
Há muito que se pode falar das formas de realização
da humanidade, individual e coletiva. A produção, manutenção e importância dos
bens culturais podem ser analisados como um enorme setor da economia, que gera
produto, emprego, renda, impostos, e fazem parte do crescimento econômico e do
desenvolvimento social. Desse ponto de vista, a cultura pode ser vista como os
demais setores econômicos e analisado qual deve ser o papel do Estado para o
setor cultural.
Recordo a polêmica, em 2010, sobre a proposta de
recriar a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A.), como uma estatal
subsidiada com dinheiro público. Na época, escrevi propondo discutir qual deve
ser o papel do governo em relação à cultura, a partir de três hipóteses: a) não
se envolver; b) controlar e dominar; c) apoiar e incentivar.
De início, sou contra a opção “b” (controlar e
dominar), pois não há anjos na Terra. Controlar e dominar o que pode e o que
não pode ser feito em matéria de cultura é coisa de regimes ditatoriais e/ou
totalitários. Todos os governos ditatoriais, de esquerda ou de direita, sem nem
uma só exceção, controlaram, dominaram e censuraram o vasto espectro do que se
pode chamar de “cultura”.
A opção “a” (não se envolver) implica deixar que a
produção, manifestação e consumo de todas as formas de cultura sejam resolvidos
pelo mercado, livremente e sem dinheiro público. Neste caso, embora predomine a
liberdade, sem verbas estatais, pois quando o governo subsidia ou financia bens
culturais, ele sempre tem inclinação para controlar e censurar, sob o poder de
decidir que projetos aprovar e quais negar.
Em certo sentido, a total omissão do Estado não é
boa. Por exemplo, um museu que guarda, protege e conserva objetos históricos
pode necessitar que a sociedade banque sua existência, diretamente ou via
tributos. Já no caso de um filme ou show de rock, embora sejam bens culturais,
a essência e a finalidade são totalmente diferentes.
No ano de 2003, após a derrubada de Saddam Hussein,
o Museu de Bagdá foi saqueado e destruído, e mais de 170 mil peças
desapareceram, muitas vindas desde a antiga Mesopotâmia, região considerada o
berço da civilização, onde surgiram as primeiras cidades, o primeiro alfabeto e
o primeiro código jurídico. Uma parte da história humana foi simplesmente
banida.
Esse é um exemplo de “espaço cultural” que exige a
intervenção do governo para guardar, manter, conservar e garantir as peças
contra deterioração, roubo ou destruição, pois não se trata de um assunto
comercial, mas sim da preservação da memória e da história. Há outros bens e
atividades culturais que precisam do apoio estatal.
Assim considerando o amplo espectro do que se pode
chamar de “bens culturais”, em uma sociedade livre, a melhor opção é a “c”
(apoiar e incentivar). Mas o governo deve ser submetido a leis que regulem o
que deve ser objeto de apoio e incentivo estatal, ao tempo em que impeça
proibição e censura personalíssima.
A velha Embrafilme foi criada em setembro de 1969,
em pleno regime militar, e extinta em março de 1990, no governo Collor, e
sempre foi criticada à esquerda e à direita. Os críticos sempre a acusaram de
beneficiar quem aderia ao pensamento do governo. Ao terem autoridade sobre o
dinheiro, os burocratas detinham o poder de controlar e censurar.
A recriação da Embrafilme foi proposta em 2009, o
que não ocorreu, pois já havia a Agência Nacional do Cinema (Ancine), criada em
2001 como órgão oficial de fomento, regulação e fiscalização das indústrias
cinematográfica e videofonográfica. Um dos argumentos foi que cinema comercial
e de entretenimento é mercadoria, que deve se submeter ao mercado: havendo
clientes, será produzido; não havendo, não será.
Um país preocupado com a elevação intelectual do
povo deve incentivar e fomentar bibliotecas, museus históricos, preservação de
obras antigas, documentos e objetos de sua memória. Mas os indivíduos não devem
esperar que o Estado lhes garanta todos os bens culturais. Há que haver
critérios e regras.
José
Pio Martins - economista, reitor da Universidade Positivo.
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