Em 1969, o economista Harold Demsetz escreveu um artigo denominado “Informação e eficiência: um outro ponto de vista” (tradução livre), no qual acusava seu colega Kenneth Arrow de adotar, em outro estudo, o que chamou de a “abordagem do Nirvana”. No artigo, o professor Demsetz cunhou a expressão “Falácia do Nirvana” para se referir a quem adota o ponto de vista do nirvana, ou mundo perfeito, para criticar o mundo real de alternativas reais.
Tal falácia cria uma falsa dicotomia que apresenta
uma opção que é, obviamente, vantajosa. Essa solução é, ao mesmo tempo,
completamente impossível. Aqui, a palavra nirvana é utilizada no contexto do
Budismo, ou seja, um estado permanente e definitivo de beatitude, felicidade,
plenitude e perfeição.
Assim sendo, ela ignora que qualquer proposta de
possível melhora para determinado problema é, frequentemente, preferível em
detrimento de uma outra solução que sequer possui meios de se concretizar. Via
de regra, o interlocutor que se utiliza deste tipo de subterfúgio assume que,
se uma ação não é a perfeita para um problema, ela não terá serventia. Ao
utilizar a falácia do nirvana existe uma desqualificação de uma oposição à sua
ideia, pois ela sempre será imperfeita.
Uma retórica próxima à falácia do nirvana é a
falácia da solução perfeita, ou seja, a rejeição de todas as alternativas
porque nenhuma delas atende os objetivos perfeitamente. Ela surge quando o
interlocutor se recusa a pensar em termos de mudanças marginais (via de regra
por conveniência ou por algum tipo de atitude egoística), comparando
alternativas residuais com alternativas idealizadas, cuja perfeição é
inatingível.
Essa retórica tem dominado as discussões em tempos
de necessário afastamento social, segundo a popular postulação falaciosa:
"estes movimentos de fechamentos do comércio e afastamento social não vão
funcionar porque ainda vai existir contato no transporte coletivo ou no
supermercado, não importa o que se faça.” A “falácia do ônibus lotado”.
A sua refutação é que a erradicação completa do
contato e da aproximação social não é o resultado esperado. O objetivo é a
redução desse fato ao se evitar o contato que não seja absolutamente
necessário. Esses argumentos de senso comum quase sempre acompanham a
postulação egoística para a aglomeração social que convenha ao interlocutor.
Seja praia, bar, evento ou qualquer outro que lhe interesse.
A “falácia do ônibus lotado” também serve, com as
devidas adaptações de linguagem, para inibir outras soluções marginais, como
circulação restrita em certos horários, limite de frequência e outras – todas
elas desservindo a uma solução porque sempre existirá… o ônibus lotado.
Sem entrar no mérito da infâmia que é comparar a
utilização de única forma de transporte possível a um trabalhador que busca a sobrevivência
a um momento de festa – a pretexto de encontrar uma justificativa ao segundo
fechando os olhos aos efeitos coletivos de suas ações particulares - a
atitude, além de egoísta (em direção à essência da maldade humana como Saramago
procurou mostrar em “ensaio sobre a cegueira”), também mostra a apelação a uma
alternativa que obviamente não é viável, a proibição do uso de transporte
público ou o fechamento dos mercados, ou seja, a refutação da alternativa real
em razão do não atingimento do ideal, como explicava Demsetz.
E, antes fosse somente uma falácia de senso comum a
justificar atitudes dentro do interesse que caiba ao interlocutor, o discurso é
usado para justificar atos que podem causar danos às pessoas, atos esses que
são convenientemente abstraídos porque sempre vai haver um outro tipo de
contato.
O momento requer empatia e cuidado. Em um mundo
infestado de informações - verdadeiras, falsas, úteis, inúteis – no qual as
pessoas parecem ter perdido o receio de construir discursos que causem dano a
outros, desde que encontrem justificativa para isso, consciência, bom senso e
responsabilidade são itens de primeira ordem.
André Gonçalves Zipperer
- advogado, doutor em Direito, pesquisador da USP (Getrab), é professor da
pós-graduação em Direito do Trabalho da Universidade Positivo.
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