Recentemente, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, decidiu, em caráter liminar, que a tese de legítima defesa da honra, utilizada para justificar feminicídios e aceita, especialmente no passado, pelos jurados no plenário do Tribunal do Júri, é inconstitucional.
Referida tese, que por muito tempo foi sustentada pelos advogados criminalistas,
embora atualmente em franco desuso, objetivava um resultado favorável que
levasse à absolvição de seus clientes ou à redução da pena, pois o homicídio
praticado estaria justificado na proteção da honra daquele que o cometeu.
De fato, a sociedade machista e os conselhos de sentença normalmente formados
por homens (pois as mulheres donas de casa, pelo que previa a legislação,
podiam ser dispensadas), contribuíram para o sucesso da tese da legítima defesa
da honra, absolvendo muitos acusados de feminicídio, quando sequer um tipo
penal específico existia ou assim era denominado.
Destaca-se, neste contexto, o caso do assassinato de Ângela Diniz por seu
companheiro Doca Street, ocorrido em 1976, no Rio de Janeiro. Ao tentar
justificar o crime, Doca alegou ter ciúmes de Ângela, dizendo que, no fundo,
havia matado por amor, o que ensejou a imediata reação do movimento feminista
com o slogan: “Quem ama não mata”. Seus advogados conseguiram, em um primeiro
julgamento, o reconhecimento da legítima defesa da honra e Doca foi condenado a
uma pena de dois anos de reclusão, com suspensão condicional da pena e, dessa
forma, não foi preso.
Desde então, a tese da legítima defesa da honra vinha sendo utilizada para
absolver acusados de feminicídio ou diminuir consideravelmente sua pena,
obviamente perdendo força com o desenvolvimento social e a diminuição do
machismo, de modo que a jurisprudência demonstra que os jurados passaram a não
reconhecer com tanta facilidade (como outrora) referida tese.
Em recente Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 779, o
Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionou, perante o Supremo Tribunal
Federal, esta tese da legítima defesa da honra, diante de sua utilização para
absolvição de acusados de feminicídio.
A decisão liminar do Ministro Toffoli entendeu que (i) a tese da legítima
defesa da honra é inconstitucional por contrariar os princípios constitucionais
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da
igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) a interpretação conforme a
Constituição Federal dos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do
Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, obriga a exclusão
legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, (iii)
fica obstado à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa
da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou
processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena
de nulidade do ato e do julgamento.
A decisão, de início, pelo conteúdo que encerra, merece ser aplaudida, pois
rechaça e declara inconstitucional uma tese tão absurda e ultrapassada.
Por outro lado, sob a ótica da ampla defesa, o terceiro item (iii) da decisão,
deve ser visto com reservas, pois, data
venia, ultrapassa os limites legais e afronta a plenitude do
Direito de Defesa, garantida pela Constituição Federal, ao impedir que o
advogado criminalista possa sustentar referida tese em plenário.
Com a própria evolução da sociedade e o reconhecimento da inconstitucionalidade
de referida tese, a legítima defesa da honra será, na prática, de uma vez por
todas, banida de nossos Tribunais do Júri, uma vez que será totalmente inócua,
caso suscitada. Isto fará com que os advogados deixem de argui-la, já que não
mais repercutirá entre os jurados e não ensejará a absolvição desejada.
Cabe, portanto, à sociedade, representada pelo Conselho de Sentença (jurados e
juradas), refutar a absurda tese. Por outro lado, o direito de um advogado
sustentar o que bem entender no interesse da defesa de seu cliente não pode ser
tolhido. A defesa não pode ser cerceada, limitada, amputada, mutilada,
especialmente durante os trabalhos no plenário do Tribunal do Júri.
Assim sendo, provavelmente, este ponto específico da decisão liminar não deverá
ser confirmado no julgamento final (de mérito) deste caso, que será examinado
pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, o que, de forma alguma, diminui a
importância desta decisão, que confirma a necessidade da constante e
inesgotável luta contra o feminicídio.
Adriana Filizzola D'Urso - Advogada
criminalista, professora,
mestre e doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha),
membro do Instituto de Juristas Brasileiras e da Associação Brasileira das
Mulheres de Carreiras Jurídicas.
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