Um documento da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) mostra que, ao todo, 70% das enfermidades surgidas desde a década de 1940 são de origem animal, assim como o novo coronavírus que enfrentamos hoje.
Para
explicar essa relação entre o consumo da carne com doenças e até pandemias, o
Edição do Brasil conversou com a representante da Sociedade Vegetariana Brasileira,
Cynthia Schuck, que também é doutora em Zoologia pela Universidade de Oxford
(Reino Unido). Ela esclarece que isso acontece pela proximidade evolutiva entre
humanos e animais. A especialista ainda fala sobre a importância de reduzir a
ingestão de proteínas por questões de saúde pública, éticas e ambientais.
Segundo
a FAO, ao todo, 70% das enfermidades surgidas desde a década de 1940 são de
origem animal. Por qual razão esse número é tão alto?
A
grande maioria das doenças infecciosas que atingem o homem tem origem animal.
Isso acontece devido a nossa proximidade evolutiva com eles. Então, patógenos
que contaminam os bichos, como bactérias, fungos e vírus podem adquirir a
capacidade de infectar os humanos, afinal, temos uma fisiologia parecida com
algumas espécies. Quanto mais semelhança, maior a probabilidade de que
patógenos que atingem alguns animais também nos afetem.
Por
que esse índice tem crescido?
Porque
a população de espécies em contato com os humanos cresceu. Hoje somos quase 8
bilhões de pessoas, mas criamos e abatemos quase 80 bilhões de animais. Esse
aumento atua como um reservatório de patógenos que podem infectar o homem, como
a gripe suína, os diversos surtos de gripe aviária e hepatite E.
Mas
é também pela forma como esses animais são criados. Aprendemos com a COVID que
distanciamento social, boa saúde e um sistema imunológico fortalecido
dificultam a transmissão de patógenos. Os bichos são criados em condições
opostas: alta densidade, galpões fechados, com uma concentração muito grande de
amônia no ar. Isso prejudica o trato respiratório e as primeiras barreiras de
defesa deles. Eles também são selecionados para crescimento rápido e a
resistência a doenças não ocorre. Entre outros motivos, por exemplo, situações
de estresse que deprimem o sistema imunológico e os tornam extremamente
suscetíveis a enfermidades.
Esse
número pode apontar que existe uma falha na maneira como o consumo de animal é
ofertado?
Existem
protocolos de biossegurança, mas eles não são infalíveis. Em termos de saúde
pública, o problema de uma região ocorre em todos os lugares. Vimos que houve a
contaminação de COVID-19 na China que se espalhou no mundo. É muito difícil
controlar. É só pensar que, mesmo que uma granja siga esses protocolos
implementados, a partir do momento em que se retira o animal de lá e coloca em
um caminhão ou navio para transporte, a possibilidade de disseminação passa a
existir. São várias vias as quais esses patógenos podem chegar à população
humana.
Existe
uma relação entre a pandemia do novo coronavírus e o consumo de carne?
Sim.
Existem evidências da ligação entre a Sars- -Cov-2 (COVID-19) e a ingestão de
carnes. As hipóteses mais aceitas até o momento é que a transmissão ocorreu em
mercados úmidos, ou seja, aqueles que ofertam produtos de diversas espécies
para o consumo. No caso da COVID, foi a venda de animais e também as condições
em que eles, ainda que silvestres, foram criados.
Nestes
mercados eles são expostos a população também em um ambiente onde estão todos
juntos em alta densidade, em situação de estresse crônico e com
imunossupressão. Por isso, a possibilidade de encontros de diversos patógenos é
grande. É onde os fluidos desses animais – sangue, fezes – estão presentes e em
contato com humanos.
Como
mudar a relação com o consumo de animais?
É
simples, as pessoas precisam entender os custos desse consumo. Não só pessoais,
em termos da própria saúde, mas para a sociedade. É um risco de saúde pública
gerar demanda por um produto que vai aumentar a população de animais e,
consequentemente, a probabilidade de transmissão e de emergência de novos
patógenos.
Além
de prevenir o surgimento de doenças, conscientizar a população a diminuir ou
parar de consumir carne, auxiliaria em outras questões atuais?
A
diminuição do consumo de animais não só reduziria a probabilidade do
aparecimento de patógenos que podem ter potencial pandêmico na população, mas
também ajudaria em outras esferas. Por exemplo, sabe-se que hoje em dia 70% dos
antibióticos vendidos no mundo são usados na pecuária. Isso contribui para o
fenômeno do surgimento de resistência aos medicamentos em humanos, que é um
problema gravíssimo. Hoje em dia, mais de 700 mil mortes ocorrem anualmente por
conta disso e o cenário previsto é que esse número deve crescer até cerca de 10
milhões de óbitos por ano em 2050. A redução do consumo de carne certamente
iria colaborar nesse ponto.
Outra
questão é a ambiental. Os animais são uma fonte de energia mais ineficiente do
que outras fontes de nutrientes e proteínas necessários para a população
humana. Há muito desperdício de energia na forma de ração, pasto e através do
consumo de animais. Se tudo isso fosse reduzido, o uso de terras, de recursos
hídricos e os produtos da pecuária também diminuiriam. Seja a poluição de
cursos de água, do solo ou da atmosfera.
Existem
questões éticas, pois as condições de criação dos bichos estão longe da normal.
Tudo é feito de forma industrial e eles são selecionados geneticamente para um
crescimento rápido. São privados da possibilidade de expressar os comportamentos
naturais da espécie. São animais como frangos, porcos e bois, que chegam na
idade do abate com problemas cardíacos, respiratórios, ósseos, articulares e
sofrem muita dor.
Por
fim, um benefício para a saúde, o consumo de carne está associado ao aumento do
risco de uma série de doenças cardiovasculares, diabetes e hepatite E.
Na
sua opinião, essa conscientização é algo difícil? O que falta para que esse
consumo seja diminuído?
Ela
é necessária. O consumidor precisa estar informado dos custos reais do consumo
de carne, não só para a saúde dele, mas também global e pública, para o meio
ambiente e para a questão ética de sofrimento animal. Além disso, é preciso que
se criem incentivos, do ponto de vista de políticas públicas, para a produção
de proteínas mais limpas que representem um risco menor de biossegurança de
saúde.
É
essencial tornar essa fonte de proteínas mais acessíveis ao consumidor, pois
são mais saudáveis, éticas, sustentáveis e seguras, além de mais baratas e
saborosas. E isso pode ser feito facilitando o investimento nessa área.
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