O ano de 2020 jogou na cara de todos nós o quanto a vida humana é frágil e quão grande é nossa vulnerabilidade ante à fúria da natureza. Uma pergunta que ressalta da pandemia e do sofrimento por ela imposto é: o que aprendemos com tudo isso? A escritora britânica Taylor Caldwell (1900-1985), em seu magnífico livro Médico de Homens e de Almas, de 1958, afirma que “o conhecimento vem com lágrimas, desgosto e dor”.
Mesmo para quem não crê em Deus, a narrativa sobre
a vida de Lucano, ou Lucas, devidamente romanceada, traz mensagens e
ensinamentos sobre a existência na Terra que fazem bem e ajudam a entender a
vida e as ações em busca do bem e da felicidade. O personagem do livro é São
Lucas, autor de um evangelho do Novo Testamento, que a Bíblia apresenta como um
médico sábio, bem instruído e dono de um coração generoso, sempre preocupado com
o sofrimento dos pobres, enfermos e oprimidos.
O livro narra a peregrinação humana sob o desespero
e as trevas da vida, em situação de sofrimento, angústia e desesperança. Neste
ano de pandemia, ressurgem as perguntas feitas por Sócrates (469-399 a.C): Quem
somos? De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos? Santo
Agostinho (354-430 d.C), em sua filosofia, elevou o indivíduo à condição divina
e estabeleceu que a vida humana deve ser colocada no centro do universo,
protegida, respeitada e valorizada, porque o ser humano é único, dotado de
intelecto e portador de uma alma imortal.
Nos vinte séculos de predomínio de Ocidente
cristão, a questão moral e o valor da vida eram regidos por Deus, sua igreja,
seus sacerdotes, seus mandamentos, seus ritos e suas leis. A questão moral
originava as perguntas “como viver? o que devo fazer?”, cujas respostas tinham
muito da crença em Deus, que teria feito o humano à sua imagem e semelhança.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) provocou comoção na
Europa quando, 138 anos atrás, no livro A Gaia Ciência, ele bradou: “Deus está
morto!” e “fomos nós que o matamos!”, querendo
com isso dizer que a crença em Deus e a religião estavam morrendo, logo não
bastavam mais para responder à questão moral “que devo fazer?”. Sem Deus e sem
religião, por que ser moral?, questão levantada por Dostoiévski, pela boca de
seu personagem Ivan Karamazov, que disse: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.
A história da humanidade é a conquista progressiva
da liberdade, da prosperidade material e do respeito ao indivíduo, por razões
terrenas e sociais, independente da condição divina do ser humano. Quando os
liberais ingleses lutaram contra o poder imperial dos reis, o fizeram porque
consideravam que o indivíduo, sua vida, sua liberdade e sua propriedade são os
valores maiores, que devem pairar acima do Estado, não importa se Deus existe
ou não.
O filósofo francês André Comte-Sponville (1952-)
expressou sua inquietação de que a morte social de Deus, gritada por Nietzsche,
possa ser ao mesmo tempo a morte do espírito – como diz ele, o desaparecimento,
pelo menos no Ocidente, de toda vida espiritual digna desse nome – a tal ponto
que, com o esvaziamento das igrejas, só saibamos preencher nossos domingos com
o shopping
center e relegar a moral a segundo plano.
A pandemia, a angústia e a dor deveriam nos fazer
melhores, mais humanos e mais preocupados com a vida e o bem-estar de nosso
semelhante. A valorização da vida é base inclusive para o aperfeiçoamento das
soluções coletivas, principalmente aquelas executadas pelo Estado por meio de
políticas públicas e ações de governo. Daí deriva a importância de sociedade e
governo fazerem um esforço adicional no combate à pobreza, à fome, ao
desemprego e à desigualdade social.
A economia deve ser um sistema produtivo e uma a
ordem social a favor do ser humano, sua vida e seu bem-estar. Mas não esperemos
conseguir esse objetivo por ação da bondade humana. A bondade é uma virtude
humana individual, logo, as pessoas podem ser bondosas. Mas as instituições são
impessoais, em primeiro lugar elas têm interesses, a bondade vem depois, se é
que vem. Lembro que Roberto Campos, em um momento de tristeza e frustração,
disse: “O mundo será salvo pelos eficientes, não pelos caridosos, pois até os
caridosos agem por interesse”. Neste fim de ano, com o espírito de Natal, em
tempo de crise, vale a pena refletir sobre esses temas.
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