Qual a importância dada a uma criança no Brasil? Tudo deixou de fazer sentido quando veio à tona a notícia sobre uma menina que aguardava uma decisão judicial para interromper uma gravidez.
Ela
não escolheu! Essa menina de apenas 10 anos era estuprada pelo tio desde os 6
anos e por azar ela engravidou. Azar da menina ou do tio estuprador? Afinal, o
abuso somente foi descoberto por causa da gravidez.
Azar
ou não, trata-se de gravidez indesejada, originada de um estupro praticado por
um membro da família contra uma criança que tinha apenas 6 anos quando tudo
começou.
Estupro
é crime previsto no artigo 213 do Código Penal. É considerado crime grave,
hediondo e de grande repercussão social, acometendo a vítima de severas
sequelas físicas e emocionais. O estupro consiste em constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Quando
o estupro é cometido contra pessoa menor de 14 anos ou portadores de
enfermidades ou deficiências mentais, ou ainda que, por qualquer outro motivo,
tenha sua capacidade de resistência diminuída, trata-se de estupro de
vulnerável, crime previsto no artigo 217-A do Código Penal.
A
diferença entre o estupro e o estupro de vulnerável é que neste é irrelevante o
consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior
ou existência de relacionamento amoroso com o agente, pois a presunção de
vulnerabilidade é absoluta, assim previsto na Súmula 593 emitida pelo STJ em
2017. Da mesma forma que o estupro previsto no artigo 213, o estupro de
vulnerável é considerado crime grave, hediondo e de grande repercussão social,
acometendo a vítima de graves sequelas físicas e emocionais.
O
estupro descriminaliza o aborto, chamado de aborto legal. É assim denominado
por estar autorizado em lei, sendo permitido nos casos de gravidez decorrente
de estupro e gravidez que represente risco de vida à mulher, conforme previsto
respectivamente nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal.
Nesse
sentido, é importante lembrar que o assunto aborto no Brasil é tabu e como tudo
que é tabu, sustenta discussões com temas polêmicos, geralmente discriminados pela
sociedade, desde costumes, religiões, opções sexuais e estilo de vida, dentre
outros.
Com
esse caso da menina estuprada desde os seis anos pelo tio, grávida aos dez e
desesperada com o fato de carregar outra criança dentro de si, não foi
diferente. Novamente, a sociedade se polarizou na discussão do certo e errado,
do bem e do mal.
Julgamentos
e revolta atingiram profundamente toda a sociedade, que se dividiu em apoiar ou
não a interrupção da gravidez de uma criança que carregava em seu ventre uma
vida já em formação.
De
um lado, as feministas que lutam bravamente pelo respeito e desobjetificação do
corpo da mulher. Do outro lado, os fundamentalistas que, ao que parece, não se
importam nem mesmo com a vida, com a integridade física e psicológica do ser humano,
quando apoiam todos os erros da humanidade na vontade de Deus.
A
discussão ficou reservada ao direito à vida do feto contra o direito à
dignidade e também à vida da criança de 10 anos que, reforça-se, era estuprada
desde os 6 anos pelo tio.
A
contenda tirou o foco do culpado por tudo, o tio, que desapareceu do contexto
da história. Esta passou a contar com outros supostos criminosos, assim
julgados pelos fundamentalistas que se aglomeraram na porta do hospital: o
médico que realizaria o aborto, os familiares pela negligência com a menor e
até a própria vítima, a menina de 10 anos, estuprada desde os seis e que foi
chamada de assassina.
E
o tio, ele apareceu? Não, o único culpado, aquele que matou a inocência, os
sonhos e a infância dessa criança sumiu. Não se fala nele, afinal, o cerne da
discussão do ato criminoso passou a ser o aborto e não mais o estupro. Nada faz
sentido!
Mayra Vieira Dias - advogada, sócia do escritório
Calazans e Vieira Dias, líder do Projeto Justiceiras e membro voluntário do Grupo
Mulheres do Brasil
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