Por muitos anos o ritmo dançante da canção A Luz de Tieta, de Caetano Veloso, distraiu a minha atenção para a perspicácia dos versos que cito na epígrafe que abre este texto. Anos depois, recebi uma carta que trazia os versos como abertura: "Existe alguém em nós; Em muito dentre nós esse alguém; Que brilha mais do que milhões de sóis; E que a escuridão conhece também".
O poeta inicia a
estrofe indicando que há "alguém" em nós. Um familiar
desconhecido - para citar o célebre livro de Sigmund Freud que chamou esse
alguém em nós por Unheimliche. Sem tradução literal, o termo Unheimliche
aponta para o inquietante, o estranho-familiar ou a inquietante
estranheza. Trata-se no limite de algo em nós que não é propriamente
desconhecido, mas estranhamente familiar e que nos suscita angústia, confusão e
estranhamento. Remonta àquilo que é em nós o conhecido, mas secretamente
recôndito, silenciado.
Talvez esse seja esse
o sentido que o poeta captou: a condição humana é marcada pela diversidade na
unidade. Somos uma identidade matizada por múltiplos sentidos, um multiverso de
forças opostas que se conflitam e se integram constituindo a anatomia mais
básica da psique humana.
Obstante à sabedoria
expressa pelo poeta, a sociedade impõe a homens e mulheres um padrão único de
existência. Contrariando a diversidade plural constituinte do pluriverso, os
sistemas de dominação social constituem ideologias que reforçam e disseminam
estereótipos de masculinidade esquartejando a diversidade em prol de um padrão
estabelecido.
Para adaptarem-se ao
padrão social, muitos homens precisam amputar aspectos significativos do seu
ser ou estender aspectos estranhos para corresponder às expectativas do
machismo cultural. O padrão institui aos homens que o tamanho do pênis regula a
sua masculinidade; sentencia que não há espaço para demonstrar sentimentos;
treina os adolescentes para que percebam que a masculinidade do homem é
mensurável pelo dinheiro, pela marca do carro e pelo sucesso profissional.
Uma vez que a essência
deve ser suprimida em prol do estereótipo, a adaptação ao padrão compromete a
complexidade do ser humano, engaiolando-o no sistema patriarcal. O homem
torna-se prisioneiro de uma jaula de aço na qual ele mesmo é parte dessa jaula
performando uma das grades.
Reprimir a diversidade
tem um custo para os homens. Eles se tornam estranhos para eles mesmos.
Estranhos dentro de sua casa, estranhos em seu corpo. Esse estranhamento
obscurece ainda mais o sombrio impelindo ao desconhecimento de si próprio. Não
se pode supor que exista uma versão universal de masculinidade. Mesmo que haja
uma versão hegemônica, ela nunca será única. É nesse sentido que não podemos
falar em masculinidade no singular.
Em 1967, Caetano
Veloso estreou sua carreira de sucesso cantando: Caminhando contra o vento;
sem lenço sem documento; eu vou. Caminhemos contra a domesticação da
diversidade para seguir vivendo com muita Alegria, alegria .
Jorge Miklos - Sociólogo e Analista Junguiano. Atualmente dirige
uma pesquisa a respeito das masculinidades contemporâneas no Brasil.
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