Na reta final do Governo Bolsonaro, a agenda conservadora avança a galopes, mais uma vez sobre a saúde da mulher, agora especificamente sobre a dignidade de mulheres e meninas que, vítimas de estupro, sob risco de vida ou gestando fetos anencefálicos, recorram ao aborto legal. Em 7 de junho, foi divulgado o novo manual do Ministério da Saúde, intitulado “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, o primeiro documento oficial, em décadas, a incentivar a investigação de pessoas que tenham recorrido a serviços de saúde para interromper a gestação, dentro das hipóteses de aborto admitidas legalmente.
Em
outras oportunidades, setores fundamentalistas deram mostras de que não poupam
esforços em restringir (e punir) o exercício da autonomia das mulheres sobre o
próprio corpo. Como exemplos, temos a Portaria que tornou obrigatório que
equipes de saúde notifiquem à autoridade policial as situações de aborto em
caso de estupro e que orienta os profissionais em questão a informar as vítimas
de violência sexual sobre a possibilidade de visualizar o feto ou embrião por
meio de ultrassonografia. Mais recentemente, foi a vez de a violência
obstétrica ganhar carta branca do Ministério da Saúde: em maio passado, a
pretexto de “homenagear mães”, a pasta lançou a nova Caderneta da Gestante,
estimulando práticas não respaldadas em evidências científicas, como a
episiotomia (corte no períneo durante o parto) e a manobra de Kristeller
(fortes empurrões na barriga da parturiente feito com as mãos, braços ou
cotovelos). Isso tudo pouco após o desmonte da Rede Cegonha, bem-sucedido
programa de política pública voltado à assistência obstétrica à mulher no
pré-natal, parto, puerpério e ao bebê até dois anos de idade, sem prévio
diálogo com entidades da área e ignorando dispositivos legais e evidências
científicas.
Com
a sua mais nova cartilha, o Ministério da Saúde busca implantar no imaginário
coletivo, especialmente dos profissionais de saúde, diversas falácias.
Afirma-se, por exemplo, que, em nosso ordenamento, a proteção ao direito à vida
se daria incondicionalmente desde a concepção e haveria salvaguarda a um
suposto “direito a nascer”, que “todo aborto é um crime”, que o recurso à
telemedicina seria inseguro e deveria ser proibido e que as meninas e mulheres
que buscarem acessar um direito deveriam passar de vítimas e pacientes a alvos
de investigação. Nenhuma dessas premissas é sustentável.
O
Pacto de San José da Costa Rica, firmado em 1969 e ratificado pelo Brasil em
1992, menciona um direito à vida desde a concepção “em geral” - e não
incondicionalmente, como pretende o guia -, exatamente por albergar a noção de
que a dignidade e saúde das mulheres, em uma concepção ampla de “completo
bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou
enfermidade”, são direitos humanos a serem protegidos internacionalmente. O
Sistema Interamericano de Direitos Humanos confirmou essa interpretação em dois
casos paradigmáticos: Baby Boy Vs. Estados Unidos da América (1981), que
resultou na edição, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da
Resolução nº 23/81 e, mais tarde, no caso Artavia Murillo e outros Vs. Costa Rica
(2012), quando a Corte Interamericana compreendeu não só que a expressão “em
geral” comportava o estabelecimento de exceções ao direito, como também que
“não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião”.
No
âmbito do STF, discussão correlata foi travada na ADI 3510, de relatoria do
ministro Ayres Britto, que tratou sobre a constitucionalidade de pesquisas com
células-tronco embrionárias. Na ocasião, definiu-se que a Constituição não
dispõe sobre o instante preciso em que se inicia a vida, de modo que “Não faz
de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico (...)”.
Recordou-se que “A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é
meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente (...)”, mas que
“as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e
a pessoa humana é a pessoa humana”. Afirmou-se, afinal, que “Imposição [de
tentativa de nidação de todos os embriões resultado de fertilização in vitro]
(...) implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante”,
tendo em vista que, “Para que ao embrião ‘in vitro’ fosse reconhecido o pleno
direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero.
Proposição não autorizada pela Constituição”.
Anos
depois, na ADPF 54, de relatoria do ministro Marco Aurélio, que abordou a
possibilidade de antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico, o STF
afirmou, peremptoriamente, que “O Brasil é uma república laica, surgindo
absolutamente neutro quanto às religiões”. O ministro Ayres Britto, em voto
convergente, consignou ainda, sobre os casos de estupro, que “Uma condenação do
tipo ad perpetuam rei memoriam, (para a perpétua memória da coisa), no sentido
de que a imposição do estado de gravidez em si, e depois a própria convivência
com o ser originário do mais indesejado conúbio, podem significar para vítima
do estupro uma tão perturbadora quanto permanente situação de tortura”.
A
conclusão mais ampla que deveria se extrair desses marcos jurisprudenciais é de
que mulheres são pessoas, não devem ter seus corpos tratados como meros
receptáculos, desprovidos de subjetividade, e não devem ser vítimas da tortura
em que consiste gestar sem desejá-lo. À parte disso, a conclusão mais direta e
irrefutável é a de que não há um direito incondicional à vida de um embrião ou
feto, como pretende o Ministério da Saúde, sobretudo em detrimento de direitos
fundamentais de meninas e mulheres.
A
cartilha, ao afirmar que “todo aborto é crime”, busca estigmatizar aquelas que
recorrem aos serviços de aborto legal. Contudo, o próprio texto se contradiz ao
registrar, adiante, que “no âmbito da doutrina do Direito Penal, prevalece o
entendimento de que a punibilidade integra o conceito de crime e, nessa
perspectiva, o crime seria, de plano, afastado”. Independentemente dessa
ressalva, o que importa é que essa discussão é uma armadilha irrelevante para
definir a trajetória de acesso a um direito. A escolha do Estado por não punir
aborto nas hipóteses definidas no art. 128 do Código Penal e na ADPF 54 basta a
que a política pública correspondente não seja permeada dos obstáculos que o
manual procurou estabelecer.
A
imposição de violação ao sigilo médico, a vedação ao recurso seguro do aborto
com medicamentos viabilizado pela telemedicina e, finalmente, a bárbara
proposta de que meninas e mulheres sejam investigadas, tanto na hipótese de
estupro quanto de risco de vida materno, acabam por expor um contingente de
pacientes e vítimas que, por razões diversas, não querem apresentar seu trauma
em praça pública - uma revitimização equivalente a tortura. Quanto às vítimas
de estupro, recorda-se que 68,8% dos agressores são seus conhecidos. Em relação
às meninas com menos de 14 anos de idade, esse percentual sobe para 96,8%. O
trauma é enredado, nesses casos, pela vergonha e pelo medo. O Estado falha
quando não as protege da violência e depois falha, dessa vez ativamente, quando
as converte de vítimas ou pacientes em investigadas e quando compreende
planejamento familiar como obrigação de gestar a qualquer custo.
Várias
perguntas ficam sem resposta nesse ataque. Como risco de vida deixa de ser
assunto de saúde e passa a ser assunto de polícia? Como falar em família e
planejamento familiar quando o tema é estupro? Por que se continua, neste
Brasil, pensando políticas públicas para mulheres a partir da presunção de
mentira? Quando vamos ser, finalmente, tratadas como pessoas?
Elisa
Torelly - advogada especialista em Direito Constitucional, com atuação com foco
em servidores públicos, do escritório Paese Ferreira & Advogados
Milena
Pinheiro - advogada trabalhista, mestre em Direito, Estado e Constituição e
sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados