Se
cumprissem sua importante função social complementando com seriedade o serviço
público de saúde, os planos privados de saúde proporcionariam só benefícios ao
interesse público.
Entretanto,
os abusos atualmente cometidos por suas operadoras e administradoras anulam
qualquer vantagem social do sistema, constituindo procedimento tão nocivo
quanto conhecido.
Na
propaganda oferecem o melhor seguro saúde do país, com uma convincente lista de
serviços hospitalares, clínicos e laboratoriais. Anunciam a possível
portabilidade, redução de carências e eliminação de burocracias. Na assinatura
do contrato, a lista de serviços credenciados, então bastante reduzida, já não
é a mesma antes apresentada pelo corretor. Seguem-se os prazos de carências de
praxe, exibem-se só então as inúmeras cláusulas de exclusão de direitos, além
das verdadeiras ameaças para a hipótese de doenças preexistentes.
Contrato
de adesão não permite alterações individuais, muito menos as pretendidas pelo
consumidor. E, depois, ou o cidadão assina o péssimo contrato ou fica sem
cobertura em caso de sinistro. Sua situação é a do náufrago que segurando uma
tábua menor que seu corpo em alto mar ouve do salva-vidas: ou assina essa nota
promissória que já preenchi ou fica à deriva ao sabor dos tubarões.
É
pegar ou largar.
Seguem-se
daí sucessivas reduções unilaterais da lista de serviços credenciados, a
maioria das quais sem prévia notificação.
O
certo é que quando o consumidor precisa de cobertura, aí vê-se vítima de
incomum burocracia, pouco importando a qualidade de seu plano, o preço pago e
sua antiguidade no plano.
E
para completar, o que chamam de reajuste anual, ilegal por alterar as condições
contratuais unilateralmente, é na verdade preço de moeda que até os agiotas têm
vergonha de cobrar. E com desfaçatez justificam o reajuste com a falsa
afirmação de excesso de sinistralidade no período. Um seguro às avessas, em que
o risco é sempre do segurado.
Ora, quando a inflação anual chegou no máximo a 3%,
as operadoras tiveram o descaramento de cobrar um reajuste de 20% ao ano. E
agora, em plena pandemia, não tiveram o menor pudor ao cobrar além dos 20%,
parcelas retroativas, totalizando na maioria das vezes mais de 30%. Isso num
período em que, por medo e para cumprir regras de isolamento, ninguém procurou médicos,
laboratórios e hospitais, com uma enorme redução de custos das operadoras e
consequente elevação excessiva de seus lucros.
Em
outras palavras, a conduta dos agentes de operadoras e administradoras de
planos de saúde passa por uma gama inimaginável de infrações penais (propaganda
enganosa, estelionato, falsidade, omissão de socorro, periclitação da vida,
chegando a mídia a noticiar até o uso de planos para ilegal financiamento
eleitoral de governantes e parlamentares), além de incontáveis ilícitos civis
(modificação unilateral de condições contratuais e enriquecimento ilícito, por
exemplo).
Aliás,
fizeram os médicos credenciados esquecerem-se de Apolo, Esculápio, Hígia e
Panaceia e abandonarem o juramento de Hipócrates, visto que só podem socorrer quem
a operadora autorizar.
Se
ladrões tomam conta de um quarteirão da cidade, praticando assaltos sempre no
mesmo lugar à luz do dia e não há qualquer ação das autoridades, não se trata
de omissão, mas de corrupção policial.
Quando operadoras e administradoras de planos de saúde chegam
a esse nível insuportável de abusos contra o consumidor e o interesse público e
as autoridades fazem de conta que é assim mesmo, não se cuida de simples
omissão, mas de mega corrupção, certamente com mensalões distribuídos à ala
corrupta de todos os Poderes.
Uma
coisa é certa: Código Civil (art.122) e Estatuto do Consumidor (arts.6º, V, 39,
V, X, XIII, 51, IV, X) vedam expressamente modificações contratuais e reajustes
unilaterais.
Além
disso, o reajuste da mensalidade dos contratos de plano de saúde regula-se pela
legislação instituidora do plano econômico de estabilização da moeda (Lei
8.880/94), uma das maiores e irrenunciáveis conquistas nacionais das últimas
décadas, que vedou reajuste de prestações contratuais em períodos inferiores a
um ano e a incidência de índices de correção monetária superiores aos oficiais
(cf. tb. Lei 9.069/95, arts.27 e 28, §1º).
E
a Lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde,
embora posterior, não alterou esse critério, visto que a Lei 10.192/2001, bem
posterior, manteve expressamente o referido regramento econômico em defesa da
manutenção do valor da moeda e consequente combate à inflação, como política de
interesse de todos os seguimentos sociais que, por isso, a todos sem exceção há
de sujeitar.
É
necessário entender que o plano de saúde, antes de ser colocado à disposição do
consumidor, passa por cálculo atuarial, que inclui estatística de risco por
idade, características naturais e genéticas, ocupacionais, sinistralidade e
viabilidade financeira, sob pena de não ser aprovado pela ANS (Lei 9.656/98,
art.8º e 19).
Assim,
qualquer reajuste acima dos índices oficiais de inflação configura “bis in
idem”.
Nada
impede que a ANS autorize o reajuste de preços de novos planos a
serem ainda oferecidos aos consumidores. Mas os contratos anteriores já
contemplam reajustes por faixa etária, justamente com fundamento na estatística
do risco por sinistralidade, de modo que seus preços só poderão se sujeitar ao
reajuste máximo pelo índice oficial da inflação, pena de caracterizar
abusividade.
Note-se
que, se a Lei especial (9.656) autorizasse o reajuste de tais prestações acima
dos índices oficiais de inflação, cairia de qualquer forma na
inconstitucionalidade, seja porque a lei não pode ser editada para favorecer
pessoas ou grupos sociais, com afronta ao regime republicano e ao princípio da
impessoalidade dos atos do Estado, seja por ofensa ao princípio da isonomia,
visto que o sistema desigualaria odiosamente as condições entre prestador de
serviços de saúde e consumidores (CF,arts.1º, 5º e 37).
Seria
o mesmo que autorizar a coexistência de duas moedas circulantes no país: uma
(R$) para o comum do povo e a outra (US$) para os banqueiros e seguradores.
Aliás, mesmo o dólar não alcança o reajuste anual de 20% além da inflação.
Ademais,
se a propriedade, inclusive de empresas e capitais (CF, art.5º, XXII) deve
cumprir sua função social (CF, art.5º, XXIII) e a liberdade de contratar deve
respeitar os limites da função social do contrato (Código Civil, art.421), com
muito mais razão devem os contratos regulados pela Lei 9.656/98 evitar que os
segurados se tornem reféns dos abusos das seguradoras e operadoras de assistência
à saúde.
Ora,
o que caracteriza o contrato de seguro ou plano de saúde é justamente a
assunção pela operadora do risco de responsabilizar-se por maior ou menor
número de sinistros em determinado período. Não pode ela, pois, devolver tal
risco ao segurado, que só a contratou com a única finalidade de evitá-lo.
Não
é por outra razão que proíbe a lei a variação do valor até mesmo para a
renovação de contrato temporário (Lei 9.656/98, art.13).
Por
outro lado, não se diga que os planos coletivos de saúde não se sujeitam a esse
controle, por força do disposto no art.35-E, §2º, da Lei 9.656/98, que
estabelece, apenas para os planos individuais, que a aplicação de cláusula de
reajuste das contraprestações pecuniárias dependerá de prévia aprovação da ANS
(Lei 9.656/98, art.35-E, §2º). Não se pode esquecer, pois, que a cláusula
relativa aos critérios de reajuste das contraprestações pecuniárias, tanto do
plano individual como do coletivo, devem constar do contrato padrão (art.16,
XI), sujeito à fiscalização e controle da ANS (arts.1º, §1º, 20, §1º).
Ademais,
quem quer que tenha acompanhado o processo legislativo a respeito, desde os
Projetos de Lei do Senado (nº93/93) e da Câmara (nº4425/94), sabe que a
exclusão do plano de saúde coletivo do preceituado no artigo 35-E, §2º, da Lei
9.656, não tinha por finalidade estabelecer um salve- se quem puder na
contratação ou dar à operadora o odioso privilégio de definir o índice de
reajustamento que quisesse.
O
intuito do legislador sempre foi o de oferecer maiores vantagens ao coletivo do
que ao individual. E nem poderia ser o contrário. Era de se presumir, pois, que
alguém que representasse uma coletividade considerável tivesse maiores chances
de obter vantagens que ao contrato individual não se concede. É que, nas regras
de mercado, o plano de saúde coletivo é naturalmente mais vantajoso para a
operadora, pela redução dos custos de administração, de produção, prestação de
serviços, cadastramento, além da maior certeza de pontual arrecadação, sem
contar a possibilidade de maiores lucros com a captação e consequente
capitalização de vultosos recursos coletivos. É o que se chama na linguagem
mercantil de economia de escala.
Em
outros termos, o que se previa e o que se pretendia prever era que os
contratantes de planos coletivos de assistência à saúde, pela força da união de
inúmeros segurados que representam, de uma só vez, tivessem espontâneo cacife
para negociar melhores preços e índices de reajuste do que os conquistados
pelos planos individuais.
Não
se pode esquecer, por fim, que a saúde a ser prestada pelo regime universal é
dever do Estado (CF, art.5º, 6º, 196), nada impedindo que esse serviço seja
prestado por convênios, em regime complementar ou suplementar (CF, art.199).
Todavia, se uma empresa resolve atuar no campo da saúde, não pode agir como se
sua atividade fosse meramente mercantil (Lei 8.080/90, art.22). Saúde não é
comércio.
Afinal,
o grau de civilização de um povo se mede pela defesa da dignidade de seus
cidadãos.
Airton Florentino de Barros
- advogado e professor de Direito Comercial. Fundador e ex-presidente do
MPDemocrático.