O Retrato de
Dorian Gray, obra publicada em 1890 por Oscar Wilde, remete a uma obsessão
humana que atravessa eras e diferentes gerações: o apego doentio a padrões
estéticos.
Memórias de infância são assim: vez ou outra,
invadem nossa mente tão fortemente que são capazes de nos transportar através
do tempo. Imersos naquele instante, nossos olhos descrevem cada detalhe do
ambiente; o olfato nos traz os cheiros familiares; e o coração pulsa ao reviver
o momento nostálgico.
As paredes, caiadas de um tom azul-anjo,
demonstravam a simplicidade da moradia. Ali na sala, uma mesa oval coberta com
uma toalha alva estava posta para a próxima refeição. Cuscuz, tapioca, inhame e
pão-bolachão davam indícios de que se tratava de uma casa de nordestinos.
Envolvida naquela lembrança, a mulher viu-se menina
novamente, sentada na cadeira de balanço, contemplando o retrato dos avós.
Desde que se entendia por gente, o quadro estava ali, com moldura de madeira
escura e vidro côncavo. Muitas vezes, no seu pouco conhecimento, perguntava à
avó por que a foto parecia pintada, “de mentira”, como costumava dizer, sem,
todavia, obter uma resposta que saciasse sua curiosidade infantil. Aquela
fotopintura, uma verdadeira revolução na arte da fotografia ao possibilitar,
por meio da técnica inventada em 1863 pelo fotógrafo francês
André-Adolphe-Eugène Disdéri, que retratos em preto e branco fossem coloridos,
representava, sem que ela soubesse, o precursor do Photoshop, tão usado
atualmente.
Ela sorriu ao concluir a sinapse somente naquele
momento, com tantos anos de atraso. Não é o que fazemos atualmente com nossa
imagem, vez ou outra a distorcendo de acordo com os padrões de beleza vigentes,
aplicando filtros como num comercial de Cicatricure®? Alguns, para
além do universo virtual, realizam mudanças físicas na vida real, replicando em
si padrões estéticos de bonecos como Ken e Barbie.
Sim, sempre foi assim. Desde os primórdios, a busca
pela beleza irretocável esteve presente entre os anseios da humanidade. De
acordo com narrativas (verdadeiras ou fictícias, quem pode saber?), pessoas
obcecadas pela aparência perfeita, vítimas da própria vaidade, foram capazes de
pactos demoníacos para alcançarem seu desejo.
Enveredando pelo universo literário, a mulher
recordou-se do renomado escritor irlandês Oscar Wilde, que buscou na lenda de
Fausto, retratada por Goethe, e no mito grego de Narciso a inspiração para
criar sua obra-prima, O Retrato de Dorian Gray. Publicado em
1890, o único romance do autor — conhecido pela produção de poemas, contos e
dramaturgia — traz uma reflexão sobre o apego a padrões estéticos criados por
uma sociedade que tenta a todo custo caiar o lodo no qual estão enterrados
valores genuínos e insubstituíveis, que deveriam nortear a todos além da forma
física.
Dorian Gray, o protagonista da obra, ao ser
presenteado com um retrato seu, no qual o pintor capturara com maestria a
beleza do jovem, sente-se inconformado diante da cruel certeza de que um dia,
incontestavelmente, envelheceria. Disposto a tudo para evitar o que denominava
como finitude da beleza, o personagem recorre a um pacto com forças
sobrenaturais, ou, numa linguagem mais popular, com o Diabo, para resolver tal
conflito. E, assim, contra todas as expectativas, o vaidoso e fútil Dorian Gray
consegue seu intento.
Apesar do compasso infindável dos anos, ele não
envelhece, contudo, sob o verniz da bela aparência oculta-se uma alma cruel,
imoral e assassina, refletida em um quadro que é consumido pelas marcas do
tempo a cada ato repreensível de seu dono.
Em seu lugar, porventura escaparíamos ilesos da
obsessão que consumiu o célebre personagem de Oscar Wilde? Quantos de nós não
se adoecem (física e mentalmente) em busca de uma imagem que violenta nossa essência
e nos mutila com um único fim: a padronização em massa? Não há reflexão
possível, porque a colonização é silenciosa. Crianças são expostas desde cedo a
essa “uniformização” estética ao serem apresentadas aos tais filtros nas redes
sociais, que parecem inofensivos, mas escondem a necessidade que temos da
chancela e admiração dos outros.
A mulher, que tantas vezes tentou disfarçar suas
“imperfeições”, deu-se conta de que a autenticidade de seus traços era o que,
de fato, lhe permitia enxergar a riqueza da diversidade, a harmonia da
assimetria, sua herança genética. Do avô, retratado na fotografia, herdara os
cabelos lisos e castanhos; já com a avó tinha poucos traços em comum. Mas a
anciã sempre lhe contava sobre sua semelhança com a bisavó, o mesmo nariz
adunco e os cabelos longos como os de uma Mãe das Águas.
Abrigando as lembranças em seu coração saudoso, compreendeu que a alma pode vestir o corpo com outras belezas além da mera forma física. Então, sorriu para seu reflexo. Estava em paz consigo.
Tânia Lins - formada em Administração de Empresas e pós-graduada em Língua Portuguesa e Comunicação Empresarial e Institucional. Atua há mais de quinze anos na área editorial, com experiência profissional e acadêmica voltada à edição, preparação e revisão de obras, gerenciamento de produção editorial, leitura crítica e análise literária. Atualmente, é coordenadora editorial na Editora Vida & Consciência.
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