Advogada esclarece
se lei obriga mulher a fazer sexo no casamento
Na quarta-feira (10/7), a Netflix liberou o
episódio "Casamento às Cegas Brasil: Reencontro", que revelou quais
casais da quarta e mais atual temporada continuam juntos (Casamento às Cegas
Brasil: Uma Nova Chance). No programa, Ingrid Santa Rita, uma das
participantes que disse “sim” ao final da série, casando-se com Leandro Marçal,
afirmou que os dois não estão mais juntos. O motivo do término, segundo ela,
foi a falta de respeito por parte do noivo, que, nas palavras dela, tentou
manter o casamento de forma “suja” e “imunda”.
A fala da participante foi ainda mais séria e
grave. Em uma parte da conversa com os apresentadores e participantes,
inclusive o próprio Leandro, Ingrid diz:
“Eu entendi, eu te acolhi como
homem, como homem preto, tirando todo o estereótipo de que um homem preto
precisa estar sempre pronto para um sexo bom, como uma mulher preta. Só que
quando a gente foi para a minha casa, você quis resolver sozinho, Leandro. Eu
falei para você: ‘Vai fazer terapia. Eu vou esperar. Eu vou ter paciência com
você e quando tudo isso acabar e diluir, eu vou estar aqui ainda te esperando.
A gente vai reconectar. A gente vai fazer terapia em casal e a gente se
reconecta. O que você fazia Leandro? Você lembra? Você me esperava dormir”
....
“Primeiro eu dormia pelada,
depois eu dormia de calcinha, depois eu passei a dormir de pijama, depois eu
peguei o travesseiro e fui dormir no meu sofá, fugindo de você na minha cama,
no meu quarto, na minha casa. Você não me respeitou dia nenhum, por isso eu
terminei com você. No dia que as
minhas filhas me encontraram no chão tendo uma crise de pânico pedindo pelo
amor de Deus para você não tocar no meu corpo, eu pedi para você não me tocar.
Eu pedi mais de uma vez, Leandro, para você não me tocar e você não me respeitava.
Você não me ouvia. Você queria
resolver seu problema erétil com você. Era o teu ego. Eram suas mentiras.
Porque você só queria manter aquele casamento da sua forma suja e imunda”.
...
Por fim, Ingrid disse querer
distância do ex-marido: “Eu tenho nojo de você. Eu quero deixar isso muito
claro. Eu tenho nojo da sua voz. Eu tenho nojo da sua boca. Eu tenho nojo do
jeito que você me olha. Eu não quero você perto de mim. Eu não quero aproximação nenhuma. Estou deixando isso muito claro para
que todo mundo aqui ouça, eu não quero esse homem perto de mim. Você não tem o
direito. Me dá o nome, Leandro, do que você fez comigo.”
Sexo sem consentimento é estupro, e nem mesmo no
casamento há um consentimento automático. Para além, tocar no corpo de outra
pessoa sem consentimento e importunação sexual. Apesar disso, muitos homens
ainda têm o senso comum sobre terem o direito de transar com suas companheiras,
já que são casados. É preciso olhar para os aspectos jurídicos das questões de
gênero, e entender como a própria esfera legal contribuiu – ou ainda contribui
– para essa ideia. A advogada Marilia Golfieri Angella especialista em Direito
de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestre em Processo Civil pela
Faculdade de Direito da USP, elenca alguns deles abaixo.
Estatuto da Mulher Casada
Embora a Constituição Feder tenha estabelecido a
igualdade entre homens e mulheres e, portanto, já não aplicava de forma
integral o chamado “Estatuto da Mulher Casada”, este só foi extinto formalmente
com a promulgação do código civil de 2002. Ou seja, até pouco tempo estava
vigente um documento que previa uma série de obrigações e limitações sexistas
às mulheres, tal como que o era o marido o “chefe da sociedade conjugal”, sendo
ele o detentor do poder familiar em relação aos filhos comuns, funções que
exercia apenas “com a colaboração da mulher”. Por exemplo, em uma época que
ainda se discutia culpa nos casos de divórcio, quando ela advinha de ambos os
cônjuges, os filhos ficariam com as mães salvo se o juiz verificasse que poderia
“advir prejuízo de ordem moral” para as crianças.
“Débito Conjugal”
Dentro do pacto social da sociedade de antigamente,
ainda vigorava o chamado “débito conjugal”, que estabelecia o dever de um
cônjuge de ceder seu corpo à satisfação sexual do outro, o que comumente servia
aos homens para obrigarem suas esposas a praticarem sexo de forma obrigatória.
“Ainda hoje há uma cultura na sociedade que muitas
vezes nos remete à ordem vigente do Estatuto da Mulher Casada, que ‘obriga’ que
as mulheres se mantenham silentes e submetidas a uma série de violências, não
só físicas, patrimoniais etc., como também de ordem psicológica e moral, que
são mais difíceis de serem identificadas e provadas, protagonizadas muitas
vezes por maridos ou outros familiares próximos. Permanecer infeliz no
casamento e suportar situações de violência não pode mais ser a realidade e a
pergunta que fica é: o que devo saber e fazer para romper o ciclo de
violência?”, questiona a advogada.
A resposta é NÃO
“Por fim, é necessário esclarecemos que o sexo não
é mais uma obrigação decorrente do casamento, de modo que qualquer relação,
ainda que entre cônjuges, depende do consentimento do outro”, explica Marilia.
De acordo com a advogada, alguns juristas interpretam que o artigo 1.566 do
Código Civil estabelece alguns deveres entre os cônjuges no casamento, estando
entre eles a fidelidade e o dever da vida em comum, levando à obrigatoriedade
de coabitação e da satisfação sexual, porém “são também deveres do casamento o
respeito e a consideração, de modo que não se pode admitir, em pleno 2022, que
haja obrigatoriedade da prática sexual por qualquer dos cônjuges, nem tampouco
a obrigação de viverem sob o mesmo teto”, complementa.
Anular, pode?
A ausência de sexo, por si só, não gera anulação do
casamento pelas regras de Direito Civil. “Analisando os entendimentos dos
tribunais, é possível vermos que a abstinência sexual poderia levar à anulação
do casamento, sendo considerado um motivo justo para o divórcio. Contudo, ainda
que a atividade sexual seja esperada e até desejada por ambos os cônjuges em
uma relação amorosa, não há propriamente um dever”, afirma. Segundo a
especialista, “é preciso concordância e, se não há clima para um sexo saudável,
desejado e consentido, fato é que não há mais motivos para permanecerem
casados, sem que discutamos culpa, dever ou qualquer obrigação de parte a parte
pela falta da prática sexual”.
“É fato que as leis precisam acompanhar os avanços
da sociedade, principalmente na quebra de padrões discriminatórios de qualquer
minoria social, tal como as mulheres. Entender, portanto, que o dever de
praticar sexo é inerente ao casamento para as mulheres, como antigamente se
entendia como aceitável, seria fomentar a cultura do estupro, ferindo a
liberdade sexual feminina, e uma afronta direta a direitos fundamentais destas
mulheres abarcados pela nossa Constituição Federal”, completa Marilia Golfieri
Angella.
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