Recentemente, a juíza americana Beryl Howell da U.S.
District Court for the District of Columbia decidiu
que uma inteligência artificial não pode ter um copyright (direito
de propriedade intelectual análogo ao direito autoral brasileiro) reconhecido
em seu nome por sua criação “autônoma”. A juíza manteve a decisão
administrativa que negou o registro pleiteado para uma imagem criada a partir
de um sistema de inteligência artificial generativa (IAG), em que o requerente
apontava o sistema de IAG como autor da obra artística.[1]
A ação judicial foi decidida exclusivamente com
base nas informações que haviam sido apresentadas no requerimento
administrativo. Conforme argumentava o requerente, a autoria da obra criada
deveria ser reconhecida para o sistema de IAG, pois teria sido realizada de
maneira autônoma (sem envolvimento humano) pela ferramenta. Os direitos de
reprodução e distribuição da criação, por sua vez, seriam do autor da ação. A
negativa de registro foi mantida na medida em que algum grau de intervenção e
criatividade humanas seriam necessárias para que o copyright fosse
reconhecido, e o requerimento apresentado afirmava categoricamente o contrário:
que inexistiria intervenção humana relevante, pois a obra havia sido “criada
autonomamente por um algoritmo de computador funcionando em uma máquina”
(tradução nossa).
Assim, reconheceu-se que um sistema de IAG não
poderia – a título próprio – ter um copyright reconhecido.
Apesar de reconhecer a existência de argumento
alternativo, a decisão não o enfrentou, pois apresentado extemporaneamente pelo
requerente, que não o trouxe em sede administrativa perante o Copyright
Office. A discussão diz respeito à utilização de IAG enquanto meio
para a produção de obras artísticas passíveis de proteção pelo direito autoral
em nome de artistas humanos.
Esse tipo de discussão já ocorreu com outras tecnologias
utilizadas como meio para a produção artística. Por exemplo, conforme foi
abordado pela própria decisão comentada, as câmeras fotográficas são
dispositivos que reproduzem determinado cenário capturado automaticamente pelas
lentes do equipamento, mas exigem intervenção humana para a composição final da
imagem e possuem diversos aspectos técnicos e criativos. Esses aspectos
justificam e atraem a incidência da proteção de copyright. Outro
caso de proteção de copyright já reconheceu propriedade
intelectual sobre selfies de macacos
onde a intervenção humana (criação de um ambiente no qual fosse possível o uso
de câmeras pelo animal) seria reduzida.[2]
Os direitos de propriedade intelectual de maneira
geral exigem algum grau de originalidade, a partir da inventividade
humana, sobre determinadas criações para que estejam abrangidas
dentro do escopo de proteção. Assim, a discussão que se abre novamente – agora
a respeito dos sistemas de IAG – seria a determinação de qual o grau necessário
de intervenção e criatividades humanas para que uma criação seja passível de
proteção pelo copyright nesses casos.
Essa questão se desdobra em cenários práticos como
definir se a operação de um prompt seria suficiente para que uma
imagem ou texto criados por IAG fossem considerados obras com intervenção e
criatividade humanas podendo ser albergadas pela proteção de copyright
em nome daquele que provocou a IAG a produzir determinado conteúdo. Como
determinar a mínima intervenção necessária para que o produto seja protegido? E
como verificar se o produto possui originalidade, considerando que a IAG
poderia gerar o mesmo resultado para outros usuários? Além disso, se houver
proteção de PI, há uma decisão fundamental quanto ao sujeito desse direito:
seria o usuário da IAG, o proprietário do sistema, ou a obra seria de domínio
público? Essa escolha definirá diferentes incentivos econômicos para
desenvolvimento e utilização dos sistemas de IAG.
Outra questão prática é relativa à transparência
quanto ao uso de uma inteligência artificial no processo criativo. A proteção
aos direitos autorais (ou ao copyright) independe de registro da
obra, que é apenas uma forma de certificar a autoria ou a titularidade da obra,
garantindo maior segurança quanto a discussões envolvendo autoria. Por isso,
uma obra criada com o auxílio de IAG poderia ser publicada, ou mesmo
registrada, sem revelar os meios técnicos utilizados. A dificuldade neste caso
se dá pelo fato de que não há sistemas aptos a identificar com acurácia o uso
de IAG em uma produção (diferente do uso de obras de outros autores, que pode
ser verificado por sistemas anti-plágio, ao menos em produções textuais).
A questão da originalidade envolvendo criações por
IAG também se desdobra em discussões sobre plágio. Se uma obra criada por IAG
for avaliada em seu mérito, ela poderá ser entendida como genérica
ou uma mera reprodução. Nesse sentido, tais obras poderiam vir a ser
consideradas plágio caso copiem a obra de terceiros – especialmente
considerando que grandes datasets utilizados para treinar
modelos de IAG contém milhares de obras protegidas por copyright,[3]
e cuja utilização por meio do fair use vem sendo discutida. A
capacidade de reprodução de sistemas de IAG pode, inclusive, alterar argumentos
relativos ao debate da cópia de estilo. Por sua vez, obras resultantes de
produções de IAG também poderiam vir a ser objeto de plágio, se reconhecidas como
dotadas de originalidade.
Portanto, apesar de não ser uma discussão
inteiramente nova, a aplicação da proteção do copyright (e do
direito autoral) às criações de IAG apresenta características únicas quando
comparada às discussões tidas sobre outros tipos de tecnologia, particularmente
em razão do menor grau de intervenção humana necessário para o funcionamento da
IA, e de sua considerável escalabilidade. Os novos problemas levantados
exigirão o desenho de soluções específicas que não prejudiquem o
desenvolvimento das inteligências artificiais e harmonize demais direitos e
interesses envolvidos.
João Navas - advogado, pesquisador pelo Legal Grounds Institute.
Beatriz de Sousa - bacharelanda em Direito pela USP, pesquisadora pelo Legal Grounds Institute.
Referências:
[1] Caso Thaler v. Perlmutter, Civil Action No. 22-1564 (BAH) (United States District Court for the District of Columbia. 2023)
[2] Caso Naruto v. Slater, No. 16-15469 (United States Court of Appeals for the Ninth Circuit. 2018).
[3] THE ATLANTIC. Revealed: The Authors Whose Pirated Books Are Powering Generative AI. 19 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.theatlantic.com/technology/archive/2023/08/books3-ai-meta-llama-pirated-books/675063/. Acesso em 24 de agosto de 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário