O transtorno de personalidade borderline é um quadro clínico já conhecido há muitos anos. Cada quadro de personalidade possui traços típicos que compõem sua constelação clínica. Algumas características clássicas do transtorno borderline são a profunda hipersensibilidade nas relações interpessoais, a estável instabilidade das emoções, a irritabilidade e a impulsividade.
Por fora, temos um indivíduo com tempestades emocionais, com uma
marcada e observável dependência dos outros e que, ao mesmo tempo, vive
conflitos significativos nas relações interpessoais. Internamente, temos uma
situação das mais dolorosas: indivíduos que sentem tanta dor emocional que seus
recursos muitas vezes são a automutilação e o abuso de substâncias -- na tentativa de calar
a experiência de estar permanentemente em carne viva --, e, com certa frequência, nos casos mais graves, as
tentativas de suicídio.
Se nos detivermos a observar apenas os sintomas apresentados
quando tentamos entender o quadro clínico, estaremos incorrendo em uma
descrição quase vaga, com marcada superficialidade e falta de empatia. O pouco
que o público geral ganha ao aprender sobre listas de sintomas é a habilidade
de identificar uma classificação capaz de fazê-lo buscar ajuda. Porém não
devemos estigmatizar o sofrimento humano de qualquer classe. O mais importante
é procurar entender o que compõe esse quadro, de modo menos deletério, sem
reduzir o sofrimento desses pacientes ou minimizar a importância de suas
queixas.
Sendo mais cuidadosos, a prática clínica e as pesquisas atuais
mostram que, tanto nas situações mais brandas quanto nas mais graves, é notável
um problema de falta de organização, coesão e visão integrada do que é a imagem
do Eu do paciente e da imagem que se estabelece dos outros significativos. De
modo didático, prevalece, para o indivíduo, uma visão contraditória e caótica
sobre si mesmo. O mesmo problema ocorre a respeito da imagem dos outros
significativos: o paciente com transtorno borderline não tratado tem uma
significativa dificuldade em manter em sua mente a experiência psicológica da permanência
ou da continuidade do outro. O somatório desses dois elementos (não integração
do Eu e do Outro) faz com que esse paciente dependa, no mais alto grau, do
comportamento imediato da outra pessoa para avaliar a própria personalidade e
mesmo a relação vivida entre eles. Em uma imagem, podemos traduzir tudo isso
como uma pororoca. Os pacientes borderline vivem como se fossem arremessados em
estados emocionais extremos e frequentemente perdem a capacidade de juntar as
pontas entre as emoções sentidas por eles, aquelas causadas nos outros e o que
viria a ser a motivação alheia para comportamentos de todo tipo.
Apesar disso tudo, é importante afirmar que os indivíduos com
transtorno de personalidade borderline perdem apenas brevemente a capacidade de
diferenciar a realidade de suas emoções, mantendo a habilidade da empatia e
respeitando os critérios sociais desse fenômeno, por mais paradoxais que possam
ser seus episódios empáticos.
Como tais sujeitos passam a ser assim? Não existe uma opinião
hegemônica entre os profissionais sobre isso. Mesmo com a tendência
contemporânea de explicar os fenômenos humanos remetendo suas causas ao
funcionamento do cérebro ou à genética, ainda não foi possível encontrar nesse
método uma explicação suficiente para o transtorno. Sem dúvida, genes estão
envolvidos, como estão envolvidos em tudo, mas genes não causam maus
comportamentos, eles são uma das portas que permitem que esses fenômenos
aconteçam.
Certamente não devemos descartar a importância dos avanços da
neurociência ou das medicações para controle de humor ou da depressão, mas
essas estratégias de tratamento, ao menos nos dias atuais, ainda são muito
frágeis e podem, no melhor dos casos --
o que não é pouco --,
apaziguar o sofrimento dos pacientes. Contudo, o que deve ser visto aqui é o
risco de criarmos um ciclo de esperança e frustração impulsionados por apostas
na responsividade a uma medicação perfeita que ainda não existe. Assim, mais
importante do que qualquer tentativa de solução do tipo deus ex machina,
que faz apelo a uma possível causa orgânica, o que deve ser pensado são as
dificuldades e os problemas que esses indivíduos viveram e vivem desde o começo
de sua infância nas relações com os demais.
Passando ao largo de qualquer movimento de culpabilização taxativa
de familiares ou dos próprios pacientes, devemos retornar à essência do
problema. A personalidade do paciente e as formas como tais pessoas estão
habituadas a lidar com os conflitos que vivem devem ser o alvo dos tratamentos.
Trata-se, então, de um treinamento que o paciente precisa fazer para melhorar?
Sim, mas não só. Os tratamentos que propõem “pedagogias” (técnicas e
exercícios) podem ajudar nas situações mais básicas de regulação do humor e
estabilização do comportamento, mas, uma vez criado esse solo básico de
estabilidade, deve ser feito um investimento mais profundo e significativo na
forma como o indivíduo com o transtorno borderline vive de modo extremado suas
relações afetivas.
Aqui não estamos mais apontando os objetivos clínicos mais
primários, ou seja, a mera diminuição de sintomas. Estamos fazendo uma aposta
mais ousada, estamos dizendo que os pacientes com o transtorno de personalidade
borderline podem construir vidas que valem a pena ser vividas, que podem
atravessar e superar um estado depressivo conhecido por eles desde muito cedo.
Falar abertamente sobre o diagnóstico é fundamental para mudar o
prognóstico drasticamente para melhor. Por muitos anos, a literatura
especializada reportou apenas as dificuldades do tratamento dessa população
clínica, que, por sua vez, era difícil de abordar por conta da própria técnica
terapêutica inadequada que era usada nesses casos. Há trinta anos, os pacientes
borderline eram evitados por conta de uma má compreensão; hoje, o cenário mudou
radicalmente. Quando se estabelece uma relação empática dos dois lados, quando
acordos terapêuticos são feitos e uma vontade de melhorar se cria, o paciente
com uma organização borderline da personalidade pode ser visto como o possuinte
do transtorno mais tratável e com ótimo potencial de recuperação.
Bartholomeu de Aguiar Vieira - Professor
de Psicopatologia, Estágios de Psicodiagnóstico e Avaliação da Personalidade do
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
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