A tragédia das enchentes são eventos recorrentes e previsíveis. O poder público tem que ser mais assertivo para proteger a população
A cada ano, os enredos das escolas de samba mudam para abordar
temas e personagens diferentes, seja para enaltecer, seja para criticar. Mas,
algo não muda a cada verão: as enchentes com dezenas de mortos, feridos e
grande prejuízo econômico-financeiro para famílias, empresas e municípios.
Os cenários são diversos, tanto pode ser as baixadas nos
contrafortes das serras descabeladas de cobertura da outrora majestosa Mata
Atlântica nos estados da Região Sul e Sudeste, ou áreas próximas de córregos e
rios nos grandes centros urbanos do país. Desta vez, o cenário foi o litoral
norte do estado de São Paulo.
Dados do G1 e da Folha de S. Paulo indicam que as regiões de
Guarujá, Bertioga, Caraguatatuba, Ilhabela, Ubatuba e São Sebastião estão em
calamidade pública. Ao menos 40 pessoas estão desaparecidas e 44 estão mortas.
Em todo estado, somam-se 2.500 desalojados e/ou desabrigados. Equipes formadas
por uma força-tarefa com mais de 500 agentes, além de voluntários, continuam as
buscas por desaparecidos.
São Sebastião foi a região mais afetada por deslizamentos e
inundações, recebendo 640 mm de chuva em 24 horas. Segundo a BBC News Brasil, a
chuva foi 3 vezes maior que o temporal de 2014, evento considerado “mais
extremo” da história recente.
De certa maneira, faço coro ao jornalista Josias de Souza, que em
sua coluna do UOL, sob o título “Chuvas: Dito e feito, tudo foi dito e nada foi
feito” (20/02), escreveu: “o brasileiro olha para o litoral norte de São
Paulo com a incômoda sensação de que assiste à repetição de um filme de terror.
Um filme feito de tempestade, lama, destruição, desamparo e mais dezenas de
corpos. As autoridades sobrevoam o drama munidas do kit básico de primeiros
socorros. Nele, há desculpas esfarrapadas, verbas emergenciais insuficientes e
as lamentações depois do fato”.
Parece que na nossa cultura a possibilidade da tragédia,
especialmente diante de risco conhecido, contínuo e iminente, não leva à
prevenção, mas a uma Commedia dell’Arte, triste e cheia de
improvisações, na qual o triângulo amoroso dos antigos carnavais, envolve um
Pierrô que ama a Colombina, que, por sua vez, ama o Arlequim, o qual também
deseja a Colombina.
A marca do improviso e a brincadeira com a vida são notas
dissonantes dessa marchinha fúnebre, mesmo quando os personagens trocam de
nomes e de filiações ideológicas. Em um país rico, mas marcado pela imprudência
e pela imprevidência ao extremo, há muito tempo o Estado, em suas três esferas,
deveria ter uma política que atravessasse governos e garantisse condições de
emprego e renda e, consequentemente, de moradia segura para as camadas mais
vulneráveis da sociedade.
Agora que sobraram apenas os retalhos de cetim das vidas de tantos
atingidos pelas enchentes, além de chorar na avenida, pois o efeito
anestesiante do carnaval já passou e a dignidade da vida não desfilou mais uma
vez, será que há algo mais que pode ser feito, além das mobilizações e ajudas
aos desabrigados?
Acredito que o exercício da cidadania está no centro da prevenção
e atuação nesses acontecimentos cíclicos de enchentes e desabamentos no Brasil.
O Estado só se move impulsionado pela cidadania. É fundamental propor ações
comunitárias e associativas, com peso representativo suficiente sobre as
Câmaras Municipais de municípios costumeiramente atingidos, porque é no
legislativo municipal que o ordenamento do solo é decidido.
É preciso também pressão popular legítima sobre os Governos
Estaduais e o Governo Federal, seja sobre o Poder Legislativo, seja sobre o
Executivo, para garantir não apenas as verbas orçamentárias, como também o
devido uso do investimento real desse dinheiro em ações imediatas de
intervenção em áreas críticas e em ações estruturantes preventivas.
A vida de cada cidadão brasileiro não é apenas responsabilidade de
cada um, de cada família. É também dever do Estado, conforme reza a nossa
Constituição. Há uma tutela mínima de segurança e de saúde sobre a população,
que é obrigação do Estado, independentemente da concepção ideológica que defina
quais são seus deveres, além destes.
Ao falar de cidadania, introduzo um conceito muito precioso para a
visão cristã reformada sobre os deveres do cristão relacionados ao amor ao
próximo, quais sejam o de solidarizar-se, demonstrando legítima compaixão, que
não apenas sente a dor dos que sofrem, mas que, efetivamente, mobiliza-se para
atenuá-la, seja pelas orações de consolo para que sejam confortados em meio à
tragédia, seja em boas obras de ajuda concreta quando mais se precisa.
As tentativas de explicação das razões por que vidas tão preciosas
se perdem no mar da negligência humana nunca serão suficientes para aliviar a
dor. Como consolar um pai ou mãe de um filho pequeno cuja existência toda ainda
estava pela frente? Como trazer paz às memórias saudosas de alguém que já não
tem mais a companhia de quem se foi? Essa não é uma tarefa possível às palavras
humanas, mas é possível encontrar no ombro amigo, às vezes, silencioso, e,
certamente, nas súplicas a Deus a força para viver apesar do que aconteceu. Por
isso, além de chorar com os que choram, suplicar a graça divina alivia e ajuda.
No sentido de dar concretude a essa solidariedade, várias igrejas
e concílios da Igreja Presbiteriana do Brasil e a Gerência de Responsabilidade
Social do Instituto Presbiteriano Mackenzie já têm se mobilizado em campanha de
arrecadação de fundos e de bens de primeira necessidade, os quais estão sendo
enviados para compor com outras forças da sociedade, o apoio que atenue as
perdas materiais.
A esperança que não desce encosta abaixo, no ritmo do desespero, é que tudo que foi dito seja totalmente feito, por cada um e por todos nós.
Robinson Grangeiro Monteiro - Chanceler do Instituto Presbiteriano
Mackenzie, doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie (UPM) e em Ministério pelo Reformed Theological
Seminary (USA), mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da
Paraíba.
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