Cultura de adipócitos diferenciados: em vermelho os lipídeos; em verde a proteína ACE-2, que serve de receptor para o SARS-CoV-2; em azul o núcleo celular(imagem: Amanda Passos e Flávio Protasio Veras)
Experimentos conduzidos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
na Universidade de São Paulo (USP) indicam que a gordura visceral – aquela que
envolve os órgãos vitais e é considerada um fator de risco para doenças
cardiovasculares, diabetes e hipertensão – contribui mais para o agravamento da
COVID-19 do que a gordura existente abaixo da pele, que dá forma aos infames
“pneuzinhos”.
Para chegar a essa conclusão, o professor do Instituto de Biologia da
Unicamp Marcelo Mori,
um dos líderes da pesquisa, infectou em laboratório dois tipos de adipócitos:
um obtido a partir de células-tronco humanas isoladas do tecido adiposo
subcutâneo e outro diferenciado a partir de células-tronco do tecido adiposo
visceral.
“Foi possível observar que o adipócito visceral é mais suscetível à
infecção pelo SARS-CoV-2, pois a carga viral aumenta bem mais nesse tipo de
célula de gordura do que no adipócito subcutâneo. Acreditamos que isso se deve,
principalmente, à maior presença da proteína ACE-2 [à qual o vírus se conecta
para invadir a célula] na superfície celular”, conta Mori à Agência FAPESP.
Além
disso, os pesquisadores notaram que, ao ser infectado, o adipócito visceral
produz uma quantidade maior de citocinas pró-inflamatórias – moléculas que
sinalizam para o sistema imune a existência de uma ameaça a ser combatida.
A pesquisa, divulgada na revista Nature Communications, contou com a participação de
diversos grupos de pesquisa da Unicamp, além de colaboradores da USP, do
Laboratório Nacional de Biociências (LNBio-CNPEM), do Instituto Nacional de
Câncer (Inca) e do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Entre os
coordenadores estão os professores Luiz O. Leiria (USP), Mariana Osako (USP)
e Daniel Martins-de-Souza (Unicamp).
A investigação recebeu financiamento da FAPESP por meio de 20 projetos (17/08264-8, 20/05040-4, 20/04746-0, 19/00098-7, 19/05155-9, 20/04583-4, 20/15959-5, 19/26119-0, 16/00194-8, 20/04558-0, 20/04579-7, 21/10373-5, 20/08716-9, 13/07607-8, 20/04919-2, 17/01184-9, 17/23920-9, 16/24163-4, 19/04726-2 e 18/21635-8).
Reservatório
viral
A equipe de Mori na Unicamp foi a primeira do mundo a mostrar – em julho
de 2020 – que o SARS-CoV-2 era capaz de infectar células de gordura humanas e a
sugerir que o tecido adiposo serviria de reservatório para o vírus (leia mais em: agencia.fapesp.br/33612/).
“Depois
disso, outros trabalhos confirmaram que o adipócito de fato pode ser infectado.
E, ao analisarmos amostras de pacientes que morreram de COVID-19, vimos que a
presença do vírus no tecido adiposo é relativamente frequente, cerca de 50% dos
casos”, conta o pesquisador.
O grupo
então decidiu investigar se havia diferença na forma como as células adiposas
viscerais e subcutâneas respondiam à infecção. No que diz respeito às doenças
metabólicas, as evidências da literatura científica mostram que a gordura
visceral é a principal vilã, enquanto a gordura subcutânea tende a ser neutra
ou até mesmo benéfica.
“Queríamos
avaliar se no contexto da COVID-19 havia uma relação semelhante”, conta Mori.
“E de fato nosso modelo sugere que, quanto mais abundante é o tecido adiposo
visceral no indivíduo com obesidade, mais chances o vírus tem de se replicar e
isso acaba amplificando o processo inflamatório.”
No
adipócito subcutâneo, por outro lado, o grupo observou que a infecção leva a
uma diminuição da lipólise, como é conhecido o processo de quebra dos lipídeos
em moléculas de ácidos graxos que podem ser usadas como fonte de energia
durante atividade física ou períodos de jejum.
“Nossa
hipótese é que isso representa uma resposta celular antiviral. Há estudos
mostrando que a inibição da lipólise diminui a capacidade replicativa do
SARS-CoV-2, o que pode ser explicado pelo fato de o vírus precisar de lipídeos
para produzir seu envelope e, além disso, demandar energia da célula para fazer
cópias de seu material genético”, explica Mori. Segundo o pesquisador,
portanto, a diminuição da lipólise no tecido adiposo subcutâneo pode ser algo
positivo para nós humanos e uma má notícia para o vírus.
Respostas
antagônicas
Os
adipócitos viscerais foram expostos a duas linhagens diferentes do SARS-CoV-2:
a ancestral, oriunda de Wuhan, na China, e isolada de um dos primeiros
brasileiros diagnosticados com COVID-19; e a gama (P.1.), que emergiu no fim de
2020 em Manaus. A diferença de suscetibilidade em relação aos adipócitos
subcutâneos foi vista apenas com a cepa ancestral.
“Vimos que
a variante de Manaus tem uma capacidade menor de infectar as células viscerais
em comparação à cepa ancestral. E, por meio de proteômica [análise do conjunto
de proteínas produzidas pela célula], observamos que, enquanto a linhagem de
Wuhan leva a uma diminuição de diversas proteínas relacionadas à resposta de
interferon na célula [mecanismo do sistema imune para combater vírus], a gama
leva a um aumento. Ou seja, com a cepa de Manaus o adipócito produz mais proteínas
que promovem uma resposta antiviral”, conta Mori.
Segundo o
pesquisador, estudos recentes apontam que, com as novas variantes virais, há
uma queda nos casos graves de COVID-19 entre pessoas com obesidade. “Mas esse
fenômeno pode ter influência de outros fatores, como vacinação ou infecção
prévia. Ou talvez esses indivíduos estejam se cuidado mais por saberem que
pertencem a um grupo de risco”, diz.
Para
tentar avançar na compreensão do tema, o grupo pretende fazer novos
experimentos em culturas de adipócitos com as linhagens delta e ômicron.
Outro
objetivo futuro é investigar possíveis impactos metabólicos da infecção pelo
SARS-CoV-2 em médio e longo prazo. “Queremos descobrir se a infecção muda o
risco de o indivíduo desenvolver diabetes ou doenças cardiovasculares, por
exemplo. Para isso uma possibilidade é estudar amostras de pacientes que
tiveram COVID-19 e depois foram submetidos a cirurgia bariátrica e verificar se
com a infecção ocorrem alterações morfológicas e funcionais no tecido adiposo visceral”,
conta.
O artigo SARS-CoV-2 infects adipose tissue in a fat
depot- and viral lineage-dependent manner pode ser lido
em: www.nature.com/articles/s41467-022-33218-8.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/infeccao-de-celulas-da-gordura-visceral-pode-contribuir-para-o-agravamento-da-covid-19-sugere-estudo/40093/
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