Entendi de encontrar a resposta à carta da Beleza. Deixei de lado o pudor de procurar entre as coisas pessoais do Medo. Algum tempo depois de perder medo do Medo, revirei-lhe um tanto dos papéis e, nos papéis, um tanto a vida. Localizei a correspondência. Eu trazia uma ideia formada do Medo; era uma concepção bem errada. Pude entendê-lo mais e melhor com a leitura do que ele mesmo se disse de si à Beleza. Reparto o texto, seguro de que sua leitura nos fará grande bem: em o compreendendo, nos compreenderemos melhor a nós.
“Beleza, minha cara,
Com medo, mas com gosto, li
tua carta! Eu, que sou como é o frio dos ventos, com o calor da emoção,
declaro-me e declaro desejo. Mesmo o Medo, às vezes, é tomado por medo. Bem,
espero não te amargurar, mas precisas entender que me volto ao não-belo!
Concedo que gosto de ser solicitado pelas vulnerabilidades dos seres que,
diante de ti, inseguros, clamam por mim. Acho que ajudo as pessoas nos momentos
em que querem ou precisam fechar a porta na cara do desejo. Sou, então, o que
dá coragem para o não ao desejo.
De minha parte, contudo,
espero que entendas, não me posso deparar com o vulnerável de mim mesmo. Eu te
recuso, e assim me recuso a temer. Seria um medo preventivo? Não sei. Sei que
fujo de ti para continuar eu em mim: Medo sem beleza.
Entendes que és como um
espelho daquilo que não venço? Explico: tu te miras bela; eu, no te ver linda,
se me miro, vejo medo em mim. Daí eu me afastar dos lugares tão teus: as
miragens, os relances, os devaneios, um gesto refreado, um piscar contido de
olhos, um afago impulsivo nos cabelos, um levar de mão à boca, um aproximar o
pulso e cheirar o próprio cheiro, um quase... Detalhes! Mistérios! É isso,
detalhes e mistérios não me convêm. Nem espelhos.
Sabes, Beleza? Tu me fazes
me provar de mim. Sim, confesso: eu, Medo, tenho medo. E é medo de ti, que
sempre espreitas, que te insinuas. É de ti, que fazes com que se goste de um
caminho terrível, percorrido pelos alguéns entre seus estar e não-estar. Ou
mais e pior: por um alguém entre teu ser e não-ser. Seres que se perdem;
titubeiam entre nós. Esses seres, amedrontados diante da inescapável escolha
entre ti e mim, tornam-se especialmente belos.
Sabes a aproximação dos
corpos? Os corpos que se roçam? Há um instante... Eu sou esse vacilo. Sim, isso
é beleza, mas eu prepondero no não saber quando ou onde tocar. Quanto de
carícia, quanto de pegada forte? Maldosamente, eu provoco o toque incerto. Já,
tu, te fazes bela, te revelas inteira, mesmo no que é meu: emoção no tom de
voz, palavras no silêncio, fuga do tema, visita enxerida de um assunto, suspiro
antes da fala, engolir seco depois de dizer... Tu és o susto que um toque traz!
Todas essas coisas são por medo, mas tudo isso acaba belo. Coisas da Beleza,
não?
Há beleza no medo e isso é
insuportável para mim. Fujo de ti. Queria tirar a beleza de mim; queria ser só
medo. E por seres sutil, tenho que sempre me precaver. Sabes onde já te
encontrei!? Pois topei contigo numa palavra que saiu numa hora errada e que
calhou tão certa... Já te vi num sorriso inibido fora de hora. Maldição! Que
inveja! Já estiveste num desvio de olhar. E eu... Eu só apareço nas
insutilezas... Não sou nada elegante. Extravagante, é o que sou.
Olha minhas inconveniências
convenientes: já te fiz deparar comigo numa saída muito antes da hora; já me
apresentei a ti não te atendendo. Até já me cheguei a ti numa virada de costas,
numa fechada de porta... Imagina só: num acender das luzes inconveniente e numa
vexante dormida precoce.
As pessoas têm medo de seus
segredos. Aí vens tu e fazes beleza na inesperada presença de algo que alguém
sequer sabia em si, mas que outro alguém já conhecia tão bem. As pessoas têm
medo do passado. Sobre seus amores, não suportam lembrar suas dores... Um caso
perdido... Então tu te tornas exatamente o que faz suave a marca, mesmo a mais
funda, que alguém carrega de alguém.
Aliás, caso perdido... Tu
ensinas que não se perdem casos; que casos nos acham nos encontros da vida. É
uma pena que as pessoas, ao invés de te enxergarem em suas perdições e perdas,
enxergam somente a mim. Sou parecido com essas pessoas: só vejo a mim quando me
cutucam minhas próprias perdas e perdições. Uma só diferença: as pessoas se perdem
a si, então perdem alguém; eu perco alguém, então me perco a mim. Acho que é
pelas semelhanças que evito espelhos... Já os vejo por demais.
Vês? Tomas posse de mim. Ou
te nego, ou morro. Beleza, não te recuso por gosto, mas por medo. Eu te recuso
por mim. Se me aproximo de ti, sinto necessidade de mim! Ah!, se eu não fosse
isso que faz alguém tanto evitar-se noutro alguém. Ai!, se eu não fosse essa
recusa que não se sabe. Se eu não fosse, eu te procurava, eu te aceitava, eu me
permitia. Se eu soubesse que sou mais eu quando ao teu lado, Beleza, eu me
aprochegava. Mas me vejo feio. Não me gosto.
Não dá! É incontornável: tu
fazes sonhar; eu sou o pânico do escuro, tiro o sono. Faço de uma flor uma
suspeita. Assusto com a fascinação. Nego que o fetiche é um requinte. Causo
compaixão pelos apaixonados. Desencanto o desejo justamente quando ele toma
feição de querer. Quebro o feitiço fazendo pensar. Olha a lembrança: da saudade
eu faço ódio. O passado deveria ser imprevisível, mas dou certeza a ele. Faço mesmo
com que se duvide de que no futuro haverá passado. Beleza, eu sou o antídoto de
ti... Logo de ti, tão bela, que és meu remédio. Mas evito me desintoxicar de
mim.
Beleza, vais ter medo. As
pessoas te traem. Elas declaram te amar, mas carregam consigo o Medo. As
pessoas andam distantes, não é? Talvez por isso me procures. Deves te sentir
relegada. Olha, lamento, mas eu também não te vou dar muita atenção. Eu te
gosto, mas se eu estiver em ti, serei o teu sorriso mais sombrio. Nem mesmo te
posso encontrar, não podemos ser vistos juntos. Imagina!, a Beleza com o Medo.
Aí, as pessoas te abandonam de vez. As pessoas mal sabem que sou um pouquinho
do que te faz bela como és.
Te cuida, adeus, Medo.”
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito
pela UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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