Opinião
Descartes nunca engoliu o ceticismo do seu
conterrâneo Montaigne, que relativizava tudo e buscava sempre se colocar no
lugar do seu interlocutor, mesmo que este fosse um gato. Aliás, quanto a isso,
Descartes ficaria ainda mais brabo: para ele, os animais não passavam de
autômatos e nunca seriam capazes de sonhar correndo atrás de lebres nem de
brincar com seus donos, mas apenas repetirem movimentos de nervos e músculos. Montaigne,
que morreu quatro anos antes de Descartes nascer, deixou uma obra
deliciosamente irregular e variada, cheia de grandes momentos e uns tantos
copidesques de Plutarco, mas que, durante anos, encantou e serviu de inspiração
pra muita gente, até invocarem com a história do “gato pensador” e, no século
XVII, lançarem sua obra no Index, onde permaneceu por cento e oitenta anos.
Descartes detestava na obra de Montaigne o elogio
da incerteza. Montaigne dizia: “(…) não vejo o todo de coisa alguma; tampouco o
veem os que nos prometem mostrá-lo." Para ele, a ignorância é o que nos
define. “Que sei eu?”, perguntava-se e, a partir desse não saber, foi tateando
a vida pela vida afora. Para Descartes, tudo isso era uma coisa perdulária,
logo para ele que dedicou a vida para conhecer a verdade como clareza e
evidência, para informar como usar a Razão e permitir a todos saírem da
escuridão da ignorância. Só que, para isso, Descartes sabia que era preciso
desconsiderar tudo o que fosse contingente, que não pudesse ser medido e
calculado, que não pudesse ser reduzido a coisas claras e distintas e Montaigne
amava justamente o contingente, pois senão por que escreveria um ensaio sobre a
flatulência? Ou sobre as cócegas? Ou sobre os coxos? Ou sobre a beleza das
prostitutas de Florença? Isso era inadmissível para o obcecado Descartes, o
homem que ganhou a alcunha de “pai da Ciência Moderna” e que contribuiu, com
sua busca insistente e seu método portátil, para um avanço do conhecimento do
universo, do nosso mundo e do nosso corpo, como poucos pensadores o fizeram.
No entanto, ainda somos a contingência e o
errático, ainda nos perguntamos: “quando brinco com a minha gata, como sei que
ela não está brincando comigo?” Sorte que a Ciência, que nos deu remédios e
vacinas contra tantos males, não assumiu de toda a obsessão de Descartes e
ainda hoje mantém o ceticismo operante de Montaigne, à prova de certezas
absolutas, de evidências indestrutíveis até mesmo para um gênio maligno. E
ainda hoje a Ciência vai tateando e se aprimorando na medida em que testa e
experimenta, e desconfia, e sabe que sabe tão pouco e que as certezas são tão
provisórias, sempre. Um pouco Descartes, um pouco Montaigne, a Ciência é. Que
sorte a nossa. Então, o que explica a implicação de Descartes com Montaigne?
Como todos os extremos que muitas vezes assumimos
para firmar uma posição que é menos nossa e é dita mais para minar o inimigo,
Descartes lutou contra a falta de segurança do edifício do Conhecimento de sua
época. Para isso, foi hiperbólico: a certeza exigia uma postura rígida e
inegociável. Nesse contexto, os céticos brincalhões como Montaigne eram um
perigo, pois fortaleciam o inimigo e precisavam ser combatidos com a mesma
fúria. "Não há espaço para o meio termo, para os isentões", poderia
ter dito Descartes sem prejuízo para sua biografia. E Montaigne poderia ter
refutado, dizendo, como de fato disse: “(…) sou eu o próprio assunto do meu
livro. Não há razão para você gastar seu tempo livre com assunto tão frívolo e
fútil”. Ou seja: me erra.
Quase cinco séculos depois, deparamo-nos com esta
questão: para impor a certeza na qual acreditam, muitos estão dispostos a
queimar na mesma fogueira, sem distinção, os obscurantistas e os céticos.
Cercam-se da ira santa dos que têm razão contra os que a negam, mas
igualmente contra os que vivem à margem, e se importam mais com os gatos e com
o ócio, com o dedo opositor ou com a reforma do calendário, como se estes
fossem alienados e, por isso, amigos dos inimigos. Há razão nisso? Ou, como
diria Montaigne: “ninguém está livre de dizer tolices; o imperdoável é dizê-las
solenemente”.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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