Todos os países - ricos ou pobres - têm sistemas de saúde precários frente aos desafios que as mudanças climáticas já começam a impor. Esta é a principal mensagem da edição 2020 do relatório Contagem Regressiva Lancet (Lancet Countdown), um estudo sobre a relação entre mudança climática e saúde. O levantamento acompanha 40 indicadores nesse tema, e a edição lançada hoje (2/12) apresenta as perspectivas mais preocupantes até o momento.
Os novos dados mostram que apenas metade dos
países pesquisados elaboraram planos nacionais de saúde e clima, com apenas
quatro informando financiamento nacional adequado, e menos da metade dos países
realizou avaliações de vulnerabilidade e adaptação para a saúde. Enquanto isso,
dois terços das cidades globais pesquisadas esperam que a mudança climática
comprometa seriamente a infraestrutura de saúde pública.
Segundo o relatório, nas últimas duas décadas
houve um aumento de 54% de mortes relacionadas ao calor entre idosos, com um
recorde de 2,9 bilhões de dias adicionais de exposição a ondas de calor
afetando quem tem mais de 65 anos em 2019 - quase o dobro da alta anterior. Nesse
mesmo período, o Brasil experimentou 39 milhões de dias a mais de exposição às
ondas de calor afetando sua população idosa em comparação com o início dos anos
2000. O cálculo da exposição de populações vulneráveis a ondas de calor é
expresso em dias/pessoa, ou seja, o número de dias de ondas de calor em relação
ao número de pessoas afetadas.
O documento ainda destaca que o calor e a seca provocaram
aumento acentuado de exposição a incêndios, causando danos ao coração e ao
pulmão devido à fumaça, além de queimaduras e deslocamentos de comunidades.
Esse cenário foi especialmente devastador no Brasil em 2019, que devido às
queimadas na Amazônia viu saltar em 28% o número de dias em que sua população
esteve exposta a um risco de incêndio de muito alto a extremo desde o início do
século.
"A pandemia nos mostrou que quando a saúde
é ameaçada em escala global, nossas economias e modos de vida podem chegar a um
impasse", diz Ian Hamilton, diretor executivo da Lancet Countdown.
"Os incêndios devastadores dos EUA e as tempestades tropicais deste ano no
Caribe e no Pacífico, coincidindo com a pandemia, ilustraram tragicamente que o
mundo não tem o luxo de lidar com uma crise de cada vez".
"A pandemia da COVID-19 lançou um holofote
sobre a capacidade atual dos sistemas de saúde para lidar com choques futuros
que a mudança climática já começa a gerar", afirma Hugh Montgomery,
co-presidente da Lancet Countdown e doutor em terapia intensiva na
University College London. Para ele a mudança climática amplia as desigualdades
existentes na saúde entre os países e dentro deles. "Nosso relatório
mostra que, assim como na Covid-19, os idosos são particularmente vulneráveis,
e aqueles com uma gama de condições pré-existentes, incluindo asma e diabetes,
correm um risco ainda maior".
O relatório - uma colaboração entre especialistas
de mais de 35 instituições, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o
Banco Mundial e liderado pelo University College London - vem a público às
vésperas do 5º aniversário do Acordo de Paris, quando o mundo se comprometeu a
limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2ºC.
"Chegamos ao 5º aniversário do Acordo de
Paris enfrentando as piores perspectivas para a saúde pública que nossa geração
já viu", lamenta Wenjia Cai, diretora do recém-lançado Centro Regional
Lancet Countdown para a Ásia, sediado na Universidade de Tsinghua, em Pequim.
"O não cumprimento de nossos compromissos climáticos pode tirar alguns
objetivos-chave de desenvolvimento sustentável do alcance, assim como nossa
capacidade de limitar o aquecimento."
Riscos no Brasil
Um destaque que diz respeito ao Brasil são as
mortes relacionadas à dieta alimentar: no Brasil são muito significativas -
quase 248 mil por ano, dos quais quase 38 mil estão ligadas ao consumo
excessivo de carne vermelha.
A poluição que causa milhares de mortes
prematuras por inalação partículas finas (PM2,5) também é apontado no relatório
com um problema crítico no país, sendo o transporte movido a combustíveis
fósseis o principal responsável.
O relatório aponta ainda que houve um aumento das
horas de trabalho perdidas devido ao calor extremo na América Latina - foram mais
de 4 bilhões de horas perdidas em 2019 no Brasil, e as perdas médias nos
últimos quatro anos são 36% maiores do que no início da década de 90. Enquanto
isso, a dengue avança no continente, com o mosquito Aedes aegypti se adaptando
cada vez mais aos ambientes urbanos de Brasil e Peru, ajudado, segundo o
relatório, pelo armazenamento improvisado de água em resposta às estiagens e
cortes de abastecimento.
Retomada Verde
Um editorial da Lancet publicado junto com o novo
relatório destaca que a mudança climática e o risco de pandemia zoonótica
compartilham os mesmos fatores, tornando-os inextricavelmente entrelaçados, de
modo que devem ser tratados em conjunto.
Os 120 acadêmicos e médicos por trás do novo
relatório dizem que se forem tomadas medidas urgentes para enfrentar a mudança
climática - implementando planos para cumprir os compromissos de limitar os
aumentos de temperatura global a bem abaixo de 2ºC - será possível mitigar
esses choques e obter benefícios econômicos e de saúde. Ao mesmo tempo, estas
ações poderiam reduzir o risco de futuras pandemias, porque os motores da
mudança climática também podem impulsionar o risco de pandemia zoonótica
(doenças infecciosas causadas por microorganismos que saltam de animais não
humanos para humanos).
"Se quisermos reduzir o risco de futuras
pandemias, devemos priorizar a ação sobre a crise climática - uma das forças
mais poderosas que impulsionam as zoonoses hoje", declara Richard Horton,
editor-chefe da The Lancet. Para ele, este é o momento de proteger a
biodiversidade e fortalecer os sistemas naturais dos quais depende nossa
civilização. "Assim como vimos com a COVID-19, uma ação retardada causará
mortes evitáveis."
Os 7 milhões de mortes anuais por poluição do ar associadas
à queima de combustíveis fósseis em todo mundo dão um exemplo desse potencial.
Na Europa, modestos passos para promover setores de energia e transporte mais
limpos viram as mortes por poluição atmosférica PM2,5 cair de 62 por 100 mil em
2015 para 59 por 100 mil em 2018. Globalmente, as mortes por PM2,5 ambientais
associadas ao carvão caíram em 50 mil no mesmo ano.
Os ganhos de saúde, por sua vez, poderiam gerar
muitos bilhões em benefícios econômicos. Por exemplo, a melhoria marginal da
qualidade do ar da União Européia nos cinco anos até 2019 poderia valer cerca
de US$ 8,8 bilhões por ano, se mantida constante.
Como a produção de alimentos é a fonte de um
quarto das emissões mundiais de gases de efeito estufa, o relatório sugere que
existe uma oportunidade semelhante para tratar de algumas das 9 milhões de
mortes anuais ligadas à má alimentação. Com a pecuária sendo particularmente
intensiva em emissões, o relatório examinou as mortes causadas pelo excesso de
consumo de carne vermelha e constatou que a mortalidade aumentou 70% nos
últimos 30 anos. Uma dieta com menos carne bovina teria portanto benefícios de
saúde diretos e também indiretos, pela diminuição das emissões.
"Há uma oportunidade genuína de alinhar as
respostas à pandemia e à mudança climática para proporcionar uma tripla
vitória: melhorar a saúde pública, criar uma economia sustentável e proteger o
meio ambiente", afirma Maria Neira, diretora do Departamento de Meio
Ambiente, Mudanças Climáticas e Saúde da Organização Mundial da Saúde.
"Mas o tempo é curto. A incapacidade de enfrentar essas crises
convergentes de modo simultâneo pode elevar a produção de combustíveis fósseis,
colocando a meta mundial de 1,5ºC fora do alcance e condenando o mundo a um
futuro de choques de saúde induzidos pelo clima."
[1] Para a dengue, a suscetibilidade climática
global à transmissão aumentou em 15% desde 1950.
A susceptibilidade à transmissão da malária em
áreas montanhosas aumentou 39% na região africana da OMS, e 150% na região do Pacífico
Ocidental da OMS desde os anos 50.
Desde 1982, a área da linha costeira adequada
para surtos de infecções por vibrio aumentou 61% no Báltico e 99% no nordeste
dos EUA (de 51% 1982-1986 para 82% 2015-2019) no Báltico, e 26% 1982-1986 a 55%
2015-2019 no nordeste dos EUA).
Relatório disponível em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32290-X/fulltext
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