Diante dos desafios
impostos ao mundo pela pandemia, afastando as pessoas e interrompendo as
atividades humanas, também o funcionamento da Justiça sofreu este impacto. Por
esta razão, buscam-se alternativas para viabilizar a prestação jurisdicional,
vale dizer, para a Justiça não parar.
Dentre as várias iniciativas, que se utilizam dos recursos tecnológicos
disponíveis, verificou-se que muitas delas foram coroadas de pleno êxito,
enquanto algumas outras, embora cobertas de boas intenções, não podem ser
implantadas, pois representariam um desastre.
Um exemplo disso é a proposta da implantação do chamado Júri Virtual. O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é que está examinando esta proposta, para
adequar a realização da sessão plenária do Tribunal do Júri, que passaria
a acontecer por videoconferência.
O debate se estabeleceu sobre o polêmico ato normativo, que tem a finalidade de
autorizar os Tribunais de Justiça estaduais e os Tribunais Regionais Federais,
a adotarem procedimentos para utilização da videoconferência nestes
julgamentos, justificando que tudo isto tem razão de ser pelas contingências
geradas pelo COVID-19.
Reagindo a isto, a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas
(ABRACRIM), entidade presidida pelo Dr. Elias Mattar Assad, da qual sou
Presidente de Honra, bem como o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
presidido pela Dra. Rita Cortez, e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM), presidido pela Dra. Eleonora Nacif, entidades das quais sou membro,
lançaram uma campanha contra esta proposta, denominada “Pelo Direito de Estar
Presente”.
Na mesma linha, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA), do qual
sou conselheiro, constituiu, por seu presidente, Dr. Carlos José Santos da
Silva - Cajé, uma Comissão de Juristas, integrada por mim (como Relator) e
pelos Drs. Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Belisário dos Santos Júnior,
Fernanda Haddad de Almeida Carneiro, Fernando Castelo Branco, Marco Nahum e
Técio Lins e Silva, para examinar o tema, trabalho que resultou em posição
contrária à proposta do CNJ, conforme os argumentos a seguir.
A primeira questão que se levanta é sobre a competência do CNJ para regular
essa matéria, pois o instituto do Tribunal do Júri está inserido entre os
Direitos e Garantias Fundamentais, previstos na Constituição Federal (artigo
5., XXXVIII).
Parece-nos indiscutível que, para se tratar da regulamentação do Tribunal do
Júri, há que se ter aprovação legislativa, até porque, qualquer modificação em seu
regramento, repercute diretamente no Princípio da Ampla Defesa, que não pode
ser restringido em hipótese alguma. Assim, faltando-lhe competência, tal
resolução do CNJ, usurparia função (também constitucional) do Poder
Legislativo.
A par da importante questão da competência, há que se verificar que tal
proposta toca em direito constitucional, porquanto, em casos de imputação de
crime doloso contra a vida, o acusado detém esse direito fundamental de ser
julgado pelo Tribunal do Júri, insculpido como cláusula pétrea de nossa Carta
Magna. Dessa forma, modificar a liturgia deste julgamento afetaria diretamente
este direito.
Tal previsão constitucional estriba-se em vários princípios que a estruturam,
tais como o Princípio da Plenitude de Defesa (conceito amplo que inclui, por
exemplo, a oratória com todos seus recursos inclusive a expressão corporal do
defensor), o Princípio da Soberania dos Vereditos (com a incomunicabilidade dos
jurados), dentre outros, de modo que, nenhum destes, pode sofrer qualquer limitação
na sua eficácia.
Esta proposta a ser apreciada pelo Conselho Nacional de Justiça afronta
princípios constitucionais norteadores do sistema jurídico brasileiro e viola,
especialmente, princípios que regem especificamente o Tribunal do Júri, enfim,
seria uma violação aos primados da própria Democracia, pois é da essência do
Júri a presença física de todos os personagens que dele devem participar.
Muitos afirmam que para saber se um país é democrático, há que se verificar sua
legislação e, se nela estiver contemplado o Tribunal do Júri, pode-se admitir
que ali existe democracia.
Multiplicam-se argumentos sustentando que a realização de julgamento pelo
Tribunal do Júri de modo virtual (não presencial), restringe o Direito à Ampla
Defesa. Por outro lado, como já afirmado, também é evidente que a
regulamentação do procedimento relativo ao Júri é matéria de lei processual
penal, de forma que não pode ser alterada por simples resolução do CNJ, mesmo
que sob o argumento de tratar-se de “caso fortuito ou força maior”. Ainda que
se justifique com a pandemia do COVID-19, tal fato, emergencial e
excepcionalíssimo, não supre a competência que se exige para tratar desta
matéria específica.
A suposta adoção de julgamento on-line pelo Tribunal do Júri, para crimes dolosos
contra a vida, ofenderia o próprio Estado Democrático de Direito, ainda que a
alteração do procedimento jurisdicional tivesse como justificativa, repita-se,
a excepcionalidade da pandemia, pois, ainda assim, mutilaria garantias
individuais e a própria cidadania.
Quem já trabalhou no Tribunal do Júri, seja como advogado, promotor, juiz,
jurado, etc., sabe da importância da presença física de todos os personagens,
especialmente do réu, pois, com todos presentes, aumentam as chances de se
concretizar a verdadeira e tão almejada Justiça.
O Ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ,
reiterando a importância do Júri, afirmou que “o Tribunal do Júri simboliza o
elo democrático entre o Poder Judiciário e a comunidade”. Isto, reafirmamos, é
verdade, com a ressalva que este “elo democrático” não é virtual, mas físico,
humano e material, de modo que a proposta do Júri Virtual, a nosso ver, deve
ser sepultada definitivamente, para o bem da Democracia, da Justiça e da
Cidadania!
Prof.
Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso - Advogado
Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, Presidente da OAB/SP
por três gestões (2004/2012), Presidente de Honra da Associação Brasileira dos
Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Presidente de Honra da Academia Brasileira
de Direito Criminal (ABDCRIM), Conselheiro Federal da OAB por duas gestões
(2013/2018), Presidente do Lide Justiça, Pós-graduado pela Faculdade de Direito
de Castilla-La Mancha (Espanha).
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