A frase do título persistiu comigo. Pensei nela ainda por alguns dias,
depois de ter lido a entrevista do escritor cubano Leonardo Padura, autor de O Homem Que Amava os Cachorros.
Entrevista curta, sem rococós, publicada em jornal paulistano de grande
circulação. Sim, Padura tem razão. O ser humano é o coronavírus do mundo.
Lapidada a máxima, extirpado seu exagero figurado, ela ainda remanesce prenhe
de significado, escancarando a nós o que preferimos manter escondido. Somos os
parasitas do mundo.
Nós sugamos incessantemente, através dos
milênios, os recursos naturais do planeta, exaurindo-os – sem nada, ou quase
nada, devolver-lhe. Parasitamos o mundo, consumimos a natureza, sem nos
preocupar com sua debilidade ou morte. Nem mesmo nos atentamos para o fato de
que a morte da natureza – a hospedeira – implicará também a morte do homem, seu
parasita viral. O parasita precisa do hospedeiro. Já este estaria melhor sem
aquele.
É fato: somos parasitas da natureza. A frase do
escritor caribenho, entretanto, parecer ter um alcance ainda maior. Não
parasitamos apenas o planeta e suas espécies – parasitamos também a nós mesmos.
Há nas relações humanas uma espécie de parasitismo social antropofágico. E,
talvez, ninguém tenha falado tão bem sobre o assunto por meio da arte senão o
diretor e roteirista sul-coreano Bong Joon-ho, cujo filme mais famoso, Parasita
(Gisaengchung,
Coreia do Sul, 2019), recebeu, na última temporada, os dois prêmios máximos do
cinema: o Oscar de melhor filme e a Palma de Ouro.
O roteiro, ao identificar o parasitismo
intersocial por meio de enredo ao mesmo tempo engraçado, dramático e de
suspense, agradou a todos. Conta-nos a história da família Kim, formada por um
casal e seus dois filhos. São pobres e estão todos desempregados. Habitam um
porão na periferia de Seul, capital da Coreia do Sul, e vão sobrevivendo como
podem, valendo-se de pequenos golpes. Pouco a pouco, usando de expedientes
eticamente condenáveis, conseguem todos eles empregar-se na casa da família
Park – uma família também composta de um casal e dois filhos, mas de outro
nível socioeconômico. Gozam de dinheiro, conforto e luxo; e moram em mansão
modernista localizada na parte alta da cidade.
Os Kims infiltram-se na casa dos Parks e vão
tirando cada vez mais proveito da situação. Está claro, pelo menos até aí, que
são eles os parasitas de que fala o título da obra – até que se começa perceber
que a história tem muito mais matizes, e vai revelar boas surpresas.
Muito apoiado na direção de arte (responsável por
construir a impressionante casa dos Parks), a narrativa mostra não dois, mas
três estratos sociais: o dos risco, estruturado na residência luxuosa situada
no alto de uma colina; o dos pobres, cujo espaço se centra em porão apertado e
claustrofóbico; e o dos indigentes, cujo locus se desenha abaixo do nível de
porão, numa espécie de subsolo escuro e inabitável. A correlação entre os
cenários e a posição social dos personagens é algo muito marcante no filme, e é
a base sobre a qual se monta toda a narrativa.
Os seres do porão não são os únicos a exercer o
parasitismo. Muitos dos outros, a seu modo, também o exercem, numa espécie de
antropofagia intersocial. Os seres de um estrato social vão devorando os de
outro estrato, não importa se abaixo ou acima. Importa tirar o máximo proveito,
usufruir quanto possível. O roteiro, sem dúvida, mostra atritos sociais, mas
não exatamente a luta de classes – conceito mais complexo, que pressupõe certa
consciência de classe. O foco do enredo parece ser mais antropofágico que
classista, ainda que o movimento transite não dentro do mesmo estrato, mas
entre eles. No lugar da luta de classes, os espaços parecem ocupados pelo
egoísmo e pelo hedonismo tipicamente humanos.
A despeito da vivacidade e da contemporaneidade
da história apresentada, o filme é ainda maior. O paroxismo é a direção do
sul-coreano. Ele não perde a mão nem por um minuto, dirige a câmera com ritmo e
rigor, entrega força estética aos enquadramentos e, de quebra, tem o controle
total do set, mantendo a harmonia e a coesão do elenco e extraindo
dos atores o máximo da arte dramática.
O elenco responde à altura. Não há atores mais
fracos, nem mesmo os mais secundários. Todos, com notável precisão, cumprem seu
personagem. A direção de arte (responsável por tirar do papel os cenários que
corporificam os estratos sociais) e a simbiose entre montagem e trilha sonora
(responsável pela vibração dos enlaces na segunda parte do filme) aprofundam a
qualidade técnica da obra. E a fotografia, embora tenha falhado na parte final,
deixando pesar o escurecimento das cenas que precedem o clímax, revela um
tratamento cuidadoso das cores e dá o apuro estético que o trabalho cenográfico
pede.
Ao longo de pouco mais de duas horas, o diretor
Bong Joon-ho, reunindo sob sua batuta atuações rigorosas e qualidades técnicas
inquestionáveis, vai movendo seus personagens pela teia parasitária da
sociedade humana, e nos faz rir, mas, ao mesmo tempo, refletir. Consegue nos
emocionar; e nos assustar. Seus personagens são parasitas egóicos, mas também
são humanos – intensamente humanos.
Sim, Parasita é um filme completo. É uma
obra para marcar. Os tempos de hoje, mergulhados na pandemia provocada pelo
novo parasita viral, igualmente marcarão. No futuro, serão lembrados como época
turva e assustadora, mas também como período do qual o homem poderá emergir
melhor. Depois de tudo, obviamente ainda seremos humanos e padeceremos dos
mesmos vícios. A mirar no passado, porém, poderemos iniciar uma longa e
progressiva migração, abandonando o parasitismo e nos instalando em novas
relações, agora urdidas no mutualismo.
Dr. André Forato Anhê - Juiz da 2ª Vara de Hortolândia
*[1] Frase do romancista Leonardo
Padura, extraída de entrevista concedida ao Estadão.com.br em 7 de maio de 2020
(https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,o-homem-e-o-coronavirus-do-mundo-diz-escritor-cubano-leonardo-padura,70003295446).
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