Na obra ‘A Alma Imoral’, do rabino Nilton Bonder,
uma passagem nos ajuda a entender a necessidade da alma em satisfazer os
desejos do corpo e busca, em sua essência, a liberdade, concretizando sua
perversão. Para tal, Bonder nos provoca com uma proposta muito justa, romper
com as tradições. Ele diz: ‘A proposta da imutabilidade é mais do que
indecorosa: ela violenta um indivíduo. Ela propõe que continuemos a fazer o que
foi feito no passado’.
Uma imoralidade da alma que revela o quão é
transgressora e precisa ser para alcançar sua verdade e reconhecer-se. Enquanto
não desvia do caminho designado, a alma vive enclausurada. Sufocada por
mordaças sociais, traduzidas por regras, padrões, moldes estéticos,
binaridades, repetições e caricaturas de si mesmo.
A luxúria é o pecado da transgressão sexual. A
luxúria, como explica Leandro Karnal, professor e historiador, possui elos com
o corpo e também com o pensamento. Enquanto podemos nos afastar da inveja
depois de um processo de reflexão com a luxúria, por mais que você assuma uma
posição reflexiva como ‘O pensador’, de Rodin, afastará o desejo sexual. Karnal
nos lembra que podemos até reprimir e sublimar, mas o desejo não pode ser
suprimido.
Ressignificância
Enquanto a cultura se encarrega de classificar,
rotular e ressignificar os corpos, as religiões, sobretudo o Cristianismo,
Judaísmo e o Islamismo, doutrinam este corpo. O ascetismo religioso prega a
concepção de que os prazeres mundanos devem ser aniquilados em prol da
fidelidade e obediência a Deus, logo, a vaidade ao corpo recriminada.
Ao corpo atribui-se o lugar do prazer maléfico, portanto,
um corpo pecador. A negligência ao corpo era sinal de redenção e uma tentativa
de livrar-se dos prazeres mundanos. Para se ter ideia da severidade e
represália à vaidade ao corpo, os mais fervorosos em sinal de subserviência não
se lavavam e se torturavam porque a carne era o lugar do pecado e, assim, não
seriam assombradas pelos desejos mundanos. Já na Renascença era comum as
freiras não lavarem o cabelo por anos. Os piolhos, que ali viviam, eram
considerados ‘pérolas divinas’.
A domesticação aos corpos não é exclusividade
religiosa e flerta com o controle e domínio social. Se por um lado Karnal nos
leva a dialética de que ‘o corpo é matéria aparente; o corpo é o visível
individual, e o ideal é invisível e está distante’, Bonder não só reforça como
pondera o raciocínio e apresenta outro conflito ao homem e a relação ao corpo,
seja o próprio e ou do outro: a nudez. Diz ele: ‘Não existe, na verdade, outro
nu além daquele que se percebe nu. E grande é o paradoxo humano no qual não há
humano que seja digno sem uma boa noção de si como nu e não há nada mais
assustador à dignidade humana do que se perceber nu’.
Interditos
Paradoxalmente, os interditos ao sexo, sejam eles
conter, aprisionar, negar, ignorar, sujeitar, abjetar e violentar pressupõem
igualmente um movimento contrário, a contravenção, a desobediência e o
descumprimento. A vontade e realização ao sexo, mesmo que as doutrinas
religiosas, a serviço da moral, se valessem do discurso condenatório e
recorressem à desaprovação de Deus, ou seja, a ideia de ‘danação divina’.
Toda nudez será castigada, ironia rodriguiana ao
controle dos corpos e da sexualidade, o próprio autor ainda é mais sarcástico
quando reflete que ‘só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se
andar nu’. Se por um lado, arrancar a máscara é arrancar um rosto antes
percebido, agora surge um outro rosto. Da mesma forma que arrancar as roupas,
acessórios, maquiagem e adereços desnuda um corpo, enaltece-se a um outro
corpo. Identitário e transgressor às normas. O ato de arrancar a desobediência
necessária.
O sexo era um mal necessário, porque a reprodução
da sociedade é a continuidade do rebanho de Deus, assegurada, pela cópula. Mas,
ao mesmo tempo, apodrecia a alma das pessoas desde que o prazer fosse
consagrado.
Pecado
O corpo, novamente, como reforça Karnal, ‘inclina a
matéria ao pecado’, como que o inferno é o corpo e o paraíso, o espírito.
Enquanto o espírito ainda possui esperança de ser salvo, o corpo possui ‘vida
própria’, insinua-se, seduz, instiga, treme, vibra, contrai, expande.
O corpo é e será alvo das repressões. Um corpo que
busca sua expressão e autonomia. Busca uma linguagem própria e se comunicar sem
sucumbir às mordaças impostas. Um corpo que cede à pressões, principalmente no
que diz respeito às intimidações da Cultura. Nilton Bonder me ajuda a esta
reflexão, pois, ‘existe em nós uma tendência de querer agradar a nós, aos
outros e à moral de nossa cultura [e] com isso, vamos, gradativamente, nos
perdendo de nós mesmos’.
E como a contradição é algo inerente a nossa
existência, em tempos de despertar de consciência, ainda nos conformamos ao
enquadramento social do corpo. Sacrificamo-nos por dietas, nos poupamos de
alimentos para reduzir taxas de gordura, enquanto no passado isso era por amor
a Deus. Mantemos a vaidade dos gregos helênicos ao corpo torneado, com a
diferença que para eles este corpo estava a serviço da superação de limites, e
hoje suplicamos pela aprovação alheia.
Agora imaginem corpos generificados e que querem e
precisam despertar? Corpos de mulheres que são desrespeitados e violentados?
Corpos transgêneros que buscam a ‘passabilidade’ ou que estão em transição?
Todos eles são, comumente, assassinados e eliminados da sociedade. Mas não se
engane. Todos os corpos estão em transição. Transgredir e contraverter são
processos para despertar.
Breno Rosostolato - psicólogo,
educador e terapeuta sexual, terapeuta de casais e professor da Faculdade Santa
Marcelina
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