Os últimos 60
anos têm testemunhado profundas transformações em todas as esferas da atividade
humana. Vivemos na era da impermanência, em que os avanços
científico-tecnológicos, que se sucedem com espantosa rapidez, causam tal
impacto nos fenômenos sociais que muitas vezes geram situações caóticas ou
mesmo conflitantes no relacionamento humano. A euforia e o “oba-oba” diante dos
progressos materiais prostram muitos diante das máquinas, em uma atitude
fetichista de meros adoradores de ídolos materiais. A atenção dos indivíduos
está voltada, sobretudo, para objetos e não para o ser humano. A revolução dos
meios de comunicação, por meio de sua principal arma, que é a manipulação, faz
dos cidadãos comuns meros robôs.
Efetivamente,
os meios de comunicação nos bombardeiam diariamente com os prodígios da
medicina, criando nova mitologia: a doença sob controle. A medicina
contemporânea, balizada pelo complexo médico-industrial (indústria de equipamentos
médicos/indústria farmacêutica) e ancorada na biologia molecular, vem avançando
de modo acelerado em todos os campos. A tecnologia médica tornou o homem
transparente mediante o estudo das imagens do seu interior e ainda permite ver
o homem pelo avesso, por meio de procedimentos endoscópicos com microcâmeras. O
que antigamente eram apenas técnicas diagnósticas vêm se tornando, cada vez
mais, procedimentos terapêuticos (radiologia intervencionista, cirurgias
laparoscópicas, colocação de próteses endovasculares...). Esse avanço
exponencial provoca um frisson não só no meio médico, mas também na sociedade –
e a “escatologia científica” passa a imperar.
Por outro
lado, há um descompasso entre avanços médicos e assistência médica de
qualidade. Existe uma brecha entre a “medicina científica” e as necessidades
dos pacientes. Outro viés da medicina contemporânea é o modelo médico adotado
pela “medicina oficial”. O modelo é biológico (ou biocêntrico), o corpo humano
é considerado máquina, que pode ser analisada em suas diferentes peças, e a
doença é encarada como mau funcionamento dos mecanismos biológicos. Em linhas
gerais, esse modelo (priorizado nas escolas médicas) adota o seguinte figurino:
1) o doente como objeto: 2) o médico como mecânico; 3) a doença como avaria; 4)
o hospital como oficina de consertos. Mas é preciso entender que o homem adoece
de suas condições biológicas, psicológicas, sociais, culturais e ambientais.
Esse modelo biológico, amparado na tecnologia, tornou a prática médica segmentada,
com o superdimensionamento das áreas especializadas. A exaltação da explicação
científica e os avanços técnicos acabaram determinando a atomização do
conhecimento. Essa pulverização do conhecimento tornou o médico generalista
inseguro e, muitas vezes, mero triador de casos para os especialistas.
Por seu
lado, o especialista só assume a responsabilidade sobre o “órgão doente” de sua
área. É mais ou menos como se o paciente fosse o “seu estômago”, o “seu pulmão”
ou coisa que o valha. Assim, um médico leva a outro. A consulta com vários
médicos acaba corrompendo a interação médico-paciente, configurando-se nesse
caso “a trama do anonimato”. Regra de ouro: é preciso que o doente saiba o nome
de seu médico, tanto no sistema público como nos serviços médicos conveniados.
Deve ser a sua referência.
Há, enfim,
deterioração crescente da medicina artesanal (anamnese/exame físico) e
supervalorização dos exames complementares e atos médicos técnicos. De sorte
que o cenário hoje é de uma medicina de pareceres especializados e de natureza
hospitalocêntrica. Esse modelo, além de elevar os custos, é de baixa eficiência
para um sistema de saúde abrangente. Vejam o que afirma o médico americano
Alvan Feinstein: “A anamnese, o procedimento mais sofisticado de medicina, é
uma técnica de investigação extraordinária; em pouquíssimas outras formas de
pesquisa científica o objeto investigado fala”.
Por outro
lado, é o doente que deve estar no centro do sistema e não a doença. Diz-se que
o bom observador é aquele que enxerga a floresta, a árvore e a folha. A porta
de entrada do sistema de saúde não deve ser o hospital (a não ser para as
emergências) e o médico generalista deve ser a referência para o primeiro
atendimento. Infelizmente essa é uma espécie em extinção.
De qualquer
modo, vivemos em uma era privilegiada, pois temos uma ciência que substitui um
órgão doente por um sadio, que manipula genes, nos proporciona esperanças de
uma vacina contra o câncer e a AIDS, que nos acena com os primórdios de uma
medicina regenerativa de tecidos com o manejo das células-tronco. Bisturirobô,
terapia gênica, implantes de próteses artificiais, procedimentos diagnósticos
preditivos, fármacos inteligentes... para onde caminha a medicina? Certamente
nos avanços caminha bem, mas um discurso triunfalista da medicina só se
justifica quando essa excelência estiver ao alcance de toda a população.
Na área
assistencial alguns até se questionam se não estamos caminhando rumo a uma
antimedicina. Seria esse o caos de transição, ao qual sucederia nova medicina do
paciente? Sabe-se lá! Segundo as palavras deliciosamente irônicas de um falso
provérbio chinês: “É extremamente difícil profetizar, principalmente em relação
ao futuro”. Observa-se até mesmo brecha no relacionamento médico
generalista-médico especialista. O corpo médico vai se tornando, na linguagem
de Franck-Brentano, imensa torre de Babel em que cada especialista fala a sua
língua, mais ou menos hermética, a seus colegas. Para remediar essa
“babelização” e proporcionar maior entrosamento entre médicos de várias áreas,
seriam recomendáveis reuniões gerais nos hospitais, além de educação médica
continuada para médicos generalistas.
A porta de
entrada do sistema de saúde (SUS e convênios médicos) deveria ser aberta por
médicos generalistas (clínicos, ginecologistas, pediatras e cirurgiões) bem
formados. Eles deveriam ser uma espécie de curinga do sistema de saúde e,
portanto, aptos a lidar com uma sinusite, cefaleia primária, micose superficial
ou pneumonia comunitária, sem necessidade de enviá-los a especialistas. Por
outro lado, os avanços da medicina não são acompanhados por aumento da
satisfação dos médicos. Eles são mal remunerados e precisam (para sobreviver)
de vários empregos, onde as condições de trabalho nem sempre são adequadas.
Além disso, o médico não forma vínculo com o paciente que é usuário de uma
instituição ou de um convênio médico. Assim a interação médicopaciente-família,
que deve tranquilizar, aliviar a dor, o medo, o sofrimento e a apreensão, fica
arruinada.
Que recurso
tecnológico pode substituir esse aspecto humano da medicina? Os elementos
contidos nessa interação não podem ser substituídos por nenhuma tecnologia
médica, uma vez que são virtudes exclusivas dos seres humanos.
No Brasil o
sistema público de saúde (SUS) é de baixa eficiência, em virtude das fraudes,
desperdícios, modelo de gestão inadequado e vícios estruturais como a
concentração de atendimento em hospitais nos médios e grandes centros urbanos.
O modelo hospitalocêntrico encarece o custo-paciente, porque quase todo atendimento
acaba se tornando complexo; além disso, ele não é de boa qualidade. É preciso
deslocar o eixo, priorizando a atenção primária em uma rede bem gerenciada. O
setor público tem que adotar esse modelo, o qual, bem administrado, resolve
mais de 80% dos problemas de saúde da população. Tem que incentivar a prática
de medicina comunitária, atuar pesadamente na medicina preventiva (vacinações,
saneamento básico etc.), mobilizar recursos financeiros e humanos para o
controle das endemias. É preciso criar no sistema público de saúde a carreira
do médico, com critérios pautados (para a sua ascensão) na produtividade e
meritocracia e não apenas no tempo de serviço. Urge remunerar melhor estes
profissionais e acabar com os múltiplos vínculos, que os levam à exaustão e,
consequentemente, à baixa qualidade de assistência ao paciente. O modelo
vigente penaliza médicos e pacientes.
Lamentavelmente
estamos assistindo a uma desumanização crescente da medicina. Muitas variáveis
concorrem para que esse fenômeno ocorra: mercantilização da medicina, altos
custos operacionais dos atos médicos em um país de recursos escassos, ausência
de sistema público de saúde eficiente, subfinanciamento da saúde pública,
falência das universidades na sua missão formadora de profissionais da área,
baixa remuneração dos profissionais da saúde, além de condições de trabalho
precárias.
Pensamos que
para mudar esta situação um conjunto de medidas deve ser implementado nas áreas
da saúde e educação. Sem uma revolução nessas áreas, não temos futuro como
grande potência. É preciso fazer alguma coisa, pois como diz um provérbio
chinês (este verdadeiro): “Uma caminhada de mil léguas começa com o primeiro
passo”.
Wilson Luiz Sanvito e Zied Rasslan - médicos são
professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
ziedrasslan@uol.com.br . Publicado
originalmente na Revista da Associação Médica Brasileira (http://ramb.amb.org.br/).
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